Felicidade Pública (4): Das novas teorias do amor

Tradução pessoal de anúncios publicados no The New York Review of Books, que celebrou em Fevereiro o seu 50.º aniversário com o retomar de uma secção de “Anúncios de Amor”, lançada em 1968 (Where the Literati Find Love): “FriskyPuma, 84, procura companhia, 72 a 76, que partilhe caminhadas de parques de estacionamento até consultórios médicos. Deve gostar de descrições detalhadas de doenças; desfrutar de sonos soltos em matinés; condução diurna essencial; deve apreciar e compartilhar fotos de netos. Limitada flatulência, sendo o bater de dentes ok. Não antecipar relação de longa duração.” “Mulher com um só peito procura homem com um só braço.”

I – Há um par de anos, uma directora de uma escola pública e não confessional da zona de Coimbra contava-me como se tinha batido, determinada, por ter a palavra “amor” no projecto de escola – e não “amor aos livros”, nem “amor à aprendizagem”, vitais que são, mas sim e também “amor entre as pessoas”. A luta filosófica e ideológica que se seguiu foi intensa, e as discussões entre docentes fogosas, já que a estranheza grave de ter essa palavra no projecto educativo, fora de um contexto religioso, abalou a fragilidade de visões menos reflectidas e olhares mais insípidos sobre a educação. A aprovação acabou por acontecer e ser celebrada.

O amor é mais uma palavra em desuso, ameaçada pela racionalidade fria e distanciadora destes tempos, ambivalentes e simultaneamente estéreis e fecundos. Na ciência, foi sempre, digamos... mal-amado.

Em termos públicos, vemo-lo presente com frequência nos anúncios de jornal, impressos e online, e nos rituais capitalistas dos anúncios televisivos ou dos dias celebrativos – neste comércio rouco e repisado do dia dos namorados, dia do pai, da mãe... – e num permanente convite a associá-lo ao mercado das coisas perenes, descartáveis, de massas, impessoais.

No imaginário conjunto, e apesar disso tudo e disso mesmo, desejamo-lo duradouro, íntimo, dual, fiel, recíproco, fraternal, intenso.

Barbara Fredrickson, reconhecida investigadora da Universidade da Carolina do Norte e especialista em emoções positivas, lançou em Janeiro de 2013 um livro intitulado Love 2.0. Nele desafia-nos a repensar o amor, deitando por terra, como defende, as visões pouco imaginativas, limitativas e de construção social distraída sobre o que é amar. Para isso mergulha na vida amorosa das pessoas em relação e na busca de uma definição fisiológica, e submerge no funcionamento do coração, na corrente sanguínea e nas células brancas, as tais que são protectoras do sistema imunitário, em busca de um entendimento orgânico da experiência do amor.

Sem estorvos, defende que o amor – descrito como dinâmicos mas austeros micromomentos de relação, fortemente integradores de mente e corpo – é uma onda de emoção positiva e de cuidar mútuo, que flui entre dois cérebros e corpos ao mesmo tempo. É na ressonância positiva que os une e os alimenta a ambos – tão vital quanto a actividade motora ou a comida – que quem ama evolui em felicidade e saúde.

Amar é partilha positiva; isso já (alguns) sabíamos. Mas amar não é uma experiência privada, confinada, limitada a fronteiras próprias ou decisões pessoais: é sim sincronicidade emocional, de gestos e bioquímicas, com reflexos neuronais espelhados, e efeitos duradouros, em verdadeiros círculos virtuosos – apesar e para além da brevidade e relampejo temporal que encerra. O amor não dura, diz a investigadora... mas quando acontece – e pode acontecer muitas vezes num dia, entre os que se definem como amantes e amados, ou entre desconhecidos – há um fortalecer da relação entre mente e coração. Quanto mais micromomentos amorosos sintonizados com alguém, muitos "alguéns", mais mimetizamos as emoções uns dos outros, influenciando mutuamente os padrões neurológicos, e mais estes laços sociais têm impacto na fisiologia e nutrem a saúde. Maior saúde traz em seguida mais capacidade para amar. O amor que se sente hoje, diz Fredrickson, pode literalmente mudar a nossa arquitectura celular no futuro.

Mas a autora adverte: tudo isto acontece, se for em interface real. Enviar uma mensagem de texto a dizer “amo-te” não nos alimenta da mesma forma este amor fecundo e permutado.

Ele não é por isso um horizonte longínquo e impossível para muitos, mas é uma possibilidade diária, frequente, viável a todos, isto se nos encontrarmos, se nos contemplarmos, se nos cruzarmos, se pararmos para fundear na emoção mútua.

Este pedaço de ciência leva-nos a repensar os aspectos básicos das conexões humanas, suportadas logo no acto mais simples: o olhar reciprocado com o Outro. Este vai bem além da felicidade opulenta que criámos e cimenta-se no gratuito e numa nova ocupação dos espaços entre nós, através desta forma relacional confiante que é o amor.

E aqui entram duas outras actrizes da nossa peça de hoje: a fraternidade e as políticas públicas.

“Amar é cansar-se de estar só: é uma covardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).” Bernardo Soares – heterónimo de Fernando Pessoa. "O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade." Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Parte 1‎ – Página 141, Fernando Pessoa – Publicações Europa-América, 1986.

II – O tríptico da modernidade, erigido aquando da enunciação dos princípios políticos na Revolução Francesa, deixou de fora um pilar: a fraternidade. Este desequilíbrio de atenção com as irmanadas liberdade e igualdade, pode muito bem ter fundeado algumas das fragilidades das sociedades actuais, que hoje sentimos como ferro em brasa nas nossas formas éticas de ser e de viver coesos.

A fraternidade tem sido evocada em muitas práticas públicas e privadas, mas muitas vezes serviu apenas para ligar pessoas com o intuito de potenciar redes de poder económico, político ou religioso, para fomentar classismos, ou para disfarçar paternalismos e discriminações. Um vasto grupo de investigadores da América Latina (compondo a Red Universitaria para el Estudo de la Fraternidad) começou em 2007 a investigar este “princípio esquecido”. Recentemente tive ocasião de aprender com alguns deles em Roma numa conferência internacional. Estes investigadores defendem que a fraternidade é uma exigência e uma pergunta; uma experiência e um recurso. A exigência emerge do esgotamento dos modelos políticos pré-existentes, com o fraquejar da democracia e a consequente necessidade de encontrar alternativas de vida colectiva. A pergunta, porque se procura entender cientificamente o conceito e a teoria que o sustenta, nas suas dimensões – interpelando as respostas políticas e sociais marginalizadoras que hoje detemos, e levando à precisão rigorosa do conceito. Só que um conceito abstracto podia ter a riqueza de se transformar num ideal comummente defendido, mas excedente de inutilidade. Por isso a fraternidade deve ser entendida também como uma experiência, porque a vida política nos mostrou já a sua viabilidade em memórias históricas como a do pós-apartheid na África do Sul. Aí, a práxis fraterna deu respostas a situações concretas e o mal humano deu lugar a um novo Ethos. Finalmente, a fraternidade como recurso, ferramenta investigada e passível de trazer propostas políticas reais, num utilitarismo consequente, mas fundado em princípios e na virtude. A sua aplicação concretiza-se em áreas tão diversas como a educação, a ciência política, a gestão de pessoas ou o direito internacional.

Entendida a fraternidade como um princípio político, concretizado na possibilidade real de uma cuidadosa solicitude e num reconhecimento recíproco entre cidadãos iguais e livres, voltamos ao amor. Esse amor que acontece pontualmente mas que transforma, que existe entre quem vive próximo e quem se desconhece mas se cruza, e que introduz pautas de vitalidade e reinterpretação da vida. Quem sabe se a fraternidade como princípio político não acontece quando há condições para microamores?

Quem me conhece sabe que anseio com amazónias de utopias críticas, para avançarmos, como nos diz Eduardo Galeano. Mas se a utopia é o “não lugar”, precisamos então também do “bom lugar”, a "eutopia", onde haja espaço e tempo para olhares abundantes e receptivos, complacentes com a sensibilidade do outro, num festim de conexões lúcidas, que abram ocasião para a alteridade, na base de que o outro é meu igual e livre.

Não defendo – nunca! – o alimentar a pão e circo demagógicos de novas morais de convivência. Mas apaixona-me cada dia mais uma ciência inclusiva, que traga guias e roupagens mais oportunas para as nossas vidas reais e dê voz ao silenciado. Acredito que entre a letra tantas vezes fria da ciência e o quotidiano quente as pontes se aproximam e os olhares se encontram.

Pergunto-lhe por isso, leitor: Consegue imaginar um horizonte político fraternal, que permita uma confiança generalizada, sustentada numa proliferação intencional de actos amorosos mútuos, na concepção de Fredrickson, e de possibilidades reais, como as vividas na prática das comissões de Verdade e Reconciliação da África do Sul?

Como dizia há dias Júlio Pomar, imaginar e acreditar noutras possibilidades é como manter “uma estúpida esperança, contra a aparente evidência”. E será talvez isso que nos abre, a nós cientistas e teóricos, a novas transcendências. E aos políticos, o que os desperta para a intersubjetividade fraterna?

Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.

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