Famílias pagam 34% da despesa total do país em saúde

Serviço Nacional de Saúde comemora hoje o 35.º aniversário, com as questões da sustentabilidade e redução da despesa a assumirem uma centralidade que a crise agudizou.

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Jorge Rebelo, 60 anos, enfermeiro no Serviço de Ortopedia do Hospital Dr. José de Almeida, em Cascais Nuno Ferreira Santos
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Graça Condado, 57 anos, assistente operacional da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Faro FILIPE FARINHA/STILLS
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João Cabral Fernandes, 68 anos, psiquiatra na Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica do Hospital Júlio de Matos Rui Gaudêncio

No ano passado, a despesa corrente (pública e privada) em saúde caiu 2,1%, mas foi um decréscimo inferior ao registado em 2012 ou 2011. A despesa total ficou-se nos 15.284 milhões de euros, o que corresponde a 8,9% do Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal, segundo os dados da Conta Satélite da Saúde agora divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Desagregando este valor, 66% corresponde a despesa financiada pelo sector público e 34% a despesa privada, o que, de acordo com os dados da OCDE, coloca o país com valores próximos da década de 1980, quando o SNS ainda se estava a consolidar.

A diferença de 2013 em relação aos anos anteriores é que se verificou uma ligeira mudança na tendência da despesa privada em saúde, com as famílias a gastarem um pouco menos, já que a factura do Estado subiu 0,6%. Mesmo assim, em 2010 a despesa pública ficava-se nos 70%, pelo que esta diferença, segundo o INE, traduz “o impacto das medidas políticas gerais de contenção da despesa pública, adoptadas nesses anos”.

Hoje, os 35 anos do SNS vão ser assinalados com uma cerimónia na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, que contará com a presença do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, do ministro da Saúde, Paulo Macedo, e de várias personalidades do sector, que ao longo do dia vão recordar a história de sucesso do SNS de olhos postos nos desafios futuros – com a sustentabilidade e a despesa como temas centrais. O dia será também marcado por uma homenagem ao “pai” deste projecto, António Arnaut, autor do despacho de 1978 que abriu as portas à criação do SNS um ano depois, quando o fundador do PS tinha a pasta dos Assuntos Sociais no governo de Mário Soares.

Na altura, Graça ainda não estava no mundo da saúde, mas entrou para o Hospital de Faro, no Algarve, quase a seguir, em 1981. Há quase 34 anos neste estabelecimento, diz que “a profissão de assistente operacional mantém-se a mesma”. “O nosso trabalho é colaborar com o enfermeiro e com o doente na higiene e nos exames, nas deslocações nos serviços, na alimentação… Temos as mesmas funções, mas menos condições de trabalho porque há menos recursos humanos. Tínhamos mais tempo para estar com o doente e para fazer o serviço com mais qualidade”, descreve Graça, que trabalha há largos anos na unidade de cuidados intensivos. Quais as principais diferenças que encontra em 30 anos? “Nós entrávamos e tínhamos a ideia de que havia uma carreira profissional e isso incentivava as pessoas. Tínhamos objectivos a alcançar. Agora, as pessoas entram e sabem que aquilo que ganham é aquilo com que ficam”, explica a assistente operacional, para quem a rotatividade de pessoal também contribuiu para se “perder a ideia de trabalho em equipa” numa zona do país onde surge cada vez mais oferta privada.

Estes são precisamente alguns dos problemas identificados numa análise do percurso de 35 anos do SNS por Adalberto Campos Fernandes, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Campos Fernandes salienta que o SNS representa “um dos compromissos maiores do Estado democrático”, contribuindo “não apenas para a melhoria global dos indicadores de saúde” mas, sobretudo, para a “concretização de importantes objectivos de equidade, no acesso a cuidados de saúde de qualidade, num quadro de respeito pelos valores da solidariedade e da coesão social e, consequentemente, de justiça social”.

Contudo, o também médico e antigo presidente da administração do Hospital de Santa Maria e do Hospital de Cascais aponta algumas falhas que podem comprometer os resultados alcançados, como a “confusão” que houve “entre desperdício, fraude e subfinanciamento”, que, alega, tem prejudicado o acesso, o funcionamento e a motivação dos profissionais, o que se reflecte em dados como a substituição da despesa pública pela privada. O especialista admite que fazia falta a “racionalização da despesa pública com medicamentos” e um “maior enfoque no adequado uso dos recursos disponíveis”. Porém, lamenta que o caminho tenha continuado a passar pela excessiva centralização dos cuidados e recursos, com um mapa ainda dominado por hospitais, ao mesmo tempo que a cobertura da população por médico de família permanece insuficiente.

O enfoque nos cuidados de saúde primários tem sido precisamente uma das lutas do psiquiatra João Cabral Fernandes. Entrou para o internato geral no Hospital de Santa Maria ainda em 1972. Em 1975 afastou-se durante quase dez anos para “ir para a revolução” – tendo ajudado a fundar a Liga Comunista Internacionalista – e regressou ao sistema pouco depois da criação do SNS, em 1983. Hoje está no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (Hospital Júlio de Matos), onde dirige a Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica, com muito do percurso dedicado à intervenção junto da comunidade em Odivelas.

Um trabalho que lamenta que se tenha perdido, atribuindo parte da culpa à perpetuação da ideia de que “clínicos gerais e especialistas são castas diferentes”, que não se devem misturar. “O SNS deu sempre mais importância à criação de hospitais do que aos cuidados primários”, resume. Cabral Fernandes destaca que ao longo dos mais de 30 anos de SNS houve evoluções “fundamentais”, como a consolidação dos internatos médicos e mesmo a “biologização” da psiquiatria, que permitiu dar uma melhor resposta aos doentes. Mas com uma consequência por vezes perversa: “Hoje a classe médica perdeu autoridade, estatuto e força. Isso sente-se na relação com o doente. Há uma ligação mais fria e mais dominada pelas análises, exames e diagnóstico, em vez da comunicação, de se tentar perceber o que se passa mesmo com o doente.”

Os problemas de Graça Condado e de Cabral Fernandes são semelhantes aos identificados em Lisboa pelo enfermeiro Jorge Rebelo. Começou a trabalhar no serviço público em 1982, no Hospital de São José, em Lisboa. Passou pelo INEM e pelo Hospital dos Capuchos e, desde 1998, está no Hospital de Cascais, no serviço de ortopedia, integrando a comissão de trabalhadores e também o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Sente que, sobretudo a partir de 1995, se foi perdendo a possibilidade de crescimento profissional.

“Os próprios serviços facilitavam o podermos ter tempo para os utentes e hoje as coisas não se processam dessa forma. Hoje utiliza-se a juventude, seja de médicos ou de enfermeiros e assistentes operacionais, e há uma falta de agregação, perdeu-se a noção de equipa. Estamos a individualizar-nos mais, quando o hospital deveria ser por excelência uma zona de articulação.” Jorge lamenta, ainda, que o SNS não se tenha conseguido adaptar às necessidades. Antes, na ortopedia recebiam sobretudo acidentados. Hoje são idosos. “Têm um conjunto de patologias associadas que não se pode ver apenas pelo aspecto médico-cirúrgico e que nos tomam muito mais tempo”, diz o enfermeiro.

O bastonário da Ordem dos Enfermeiros destaca que o sucesso que o SNS alcançou em muito se deve à evolução dos profissionais de enfermagem, com uma preparação académica e profissional cada vez mais estruturada. Porém, Germano Couto adverte que, com a falta de enfermeiros nas instituições, os cuidados prestados estão a ser afectados. “Não devemos esperar que os utentes nos procurem, devemos prevenir a doença, e isso está em causa com a carência de enfermeiros”, justifica, criticando ainda, tal como Jorge Rebelo, o “actual modelo de medição do trabalho focado nos processos, e não na qualidade dos resultados”, a falta de autonomia nos cuidados de saúde primários e as políticas de saúde gizadas em função da “duração das legislaturas”.

O economista da Saúde Pedro Pita Barros, analisando as medidas de contenção da despesa, refere precisamente que o problema não é a queda dos gastos, mas a diminuição da quantidade e qualidade dos serviços de assistência clínica. O que, alerta o professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, está a levar à “desmotivação que se começa a generalizar nos profissionais de saúde” com a percepção de que, no futuro, a falta de investimento pode vir a “comprometer a capacidade de intervenção do SNS”.

Quanto ao que precisa de ser feito, o economista alerta que é importante “cortar o ciclo de criação de dívida” para se evitar uma repetição da situação actual. “Gosto de ter a ambição de um SNS que tenha capacidade evolutiva para se ajustar às necessidades da população, satisfazendo cidadãos também nas suas preferências, com eficiência (isto é, sem gastar mais recursos do que os necessários)”, explica.

“O principal desafio passa pela redefinição estratégica do papel do SNS, no contexto do sistema de saúde, enquanto prestador mas também como regulador activo da qualidade. Nas próximas décadas, o SNS terá de prosseguir um caminho de inovação na gestão dos recursos, modernizando os processos, apostando na conciliação entre investigação, formação e actividade assistencial e, sobretudo, recuperando o seu importante papel de catalisador dos melhores profissionais e das melhores práticas”, completa Campos Fernandes.

O SNS tem tido “dificuldade em evoluir e se adaptar às necessidades da população portuguesa”, acrescenta Pita Barros, que do lado positivo deste “pilar da sociedade portuguesa” destaca “a relação de confiança que conseguiu construir com base na capacidade técnica dos seus profissionais e saúde, e a resiliência manifestada durante os tempos de crise dos últimos anos”.

Tempos de crise que são sentidos no terreno. Cabral Fernandes assume que os cortes nos vencimentos, na progressão na carreira e nos recursos estão a prejudicar os cuidados. “Há uma restrição de prescrição de medicamentos mais inovadores que afecta a qualidade”, diz. Mas, para o médico, têm sobretudo faltado “políticas de proximidade” que dêm resposta ao crescente número de doentes crónicos, avançando como exemplo de erros a transferência de competências para o sector privado e a “aposta nas parcerias público-privadas com [António] Guterres, que mais não são do que um sonho 'Blairista'”.

O bastonário da Ordem dos Médicos não duvida que o SNS trouxe resultados “absolutamente espectaculares” ao país, em indicadores que vão da mortalidade infantil à esperança média de vida. “O SNS permitiu retirar o país da pré-história da saúde e colocá-lo nos melhores”, salienta. Só que José Manuel Silva teme que muitas das conquistas alcançadas se percam. “Não tenho dúvidas de que o SNS já não cumpre os seus preceitos constitucionais. Basta ver que os portugueses estão a pagar a saúde do seu bolso muito acima da média dos países da OCDE. Já não podemos falar num sistema geral, universal e tendencialmente gratuito”, sublinha o bastonário.

O médico apela a uma mudança para que a “saúde não continue a duas velocidades” e para que o cidadão volte a ser o centro do sistema, que “tem agora uma excessiva parametrização dos dados”. E entende que a reforma deve sempre passar pela aposta na prevenção e nos cuidados de saúde primários – a única forma de tornar o sistema sustentável, reitera.

“O que nunca se fez nestes anos todos foi construir equilibradamente os hospitais e os cuidados primários de saúde. Não se alterou a estratégia de investimentos públicos. Houve um erro continuado de falta de investimento em estruturas bem dimensionadas de saúde e o SNS está a morrer por falta de recursos e por um conjunto de manobras tecnocráticas”, conclui Cabral Fernandes.

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