Eles ainda estão à espera de um dia de escola normal

As aulas começaram há quase três semanas, mas há muitos professores e alunos que vivem na anormalidade. O PÚBLICO acompanhou estas pessoas num dia de escola "normal".

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Daniel Rocha

Marta, a aluna ainda sem todos os professores
Segundo o calendário oficial, esta segunda-feira começa a quarta semana de aulas, mas ainda não é desta que Marta, de dez anos, tem um dia de escola normal. A mãe, Ana Lídia Cardoso, garante que “nunca se viu coisa assim” – até quarta-feira passada, a filha, que está na EB 2,3 de Vialonga, no ensino integrado de música, em Vila Franca de Xira, tinha "menos de metade dos professores". Agora "já só faltam dois", os de Português e de História, e a mãe pergunta-se se chegarão antes de Novembro. “A situação é mesmo invulgar. No início, acreditávamos que isto estava para se resolver a qualquer momento, mas os dias vão passando e agora a questão é: quando é que se resolverá?”

Ana Lídia Cardoso, de 37 anos, também é professora (desempregada) e, por isso, domina o vocabulário que falta à maior parte dos pais. Sabe que cerca de um terço dos agrupamentos de escolas do país (304, mais concretamente) têm contrato de autonomia ou estão integradas em Território Educativo de Intervenção Prioritária (TEIP), e que, por isso, os professores são seleccionados e colocados através de dois concursos que este ano “ainda só deram problemas”.

“A primeira Bolsa de Contratação de Escola (BCE) foi anulada, devido a um erro na ordenação de professores, e desde que se detectou esse erro, por volta do dia 13, que as novas colocações foram suspensas. As Ofertas de Escola (OE) – que servem para contratar os técnicos especialistas, como os professores de música na escola da minha filha – tiveram um atraso brutal”, descreve. Está a explicar por que é que Marta ficou sem as três disciplinas de música (Formação Musical, Orquestra e Naipe) até quarta-feira passada, "quando finalmente se desbloqueram as OE"; e por que é que ainda não tem professores de História e de Português, que hão-de ser colocados, “sabe-se lá quando, através da BCE".

As aulas fazem falta? "Claro, mas há gente em situação pior: lá, no agrupamento de escolas da minha filha, os meninos do 1.º ciclo não têm professores e estão com as coordenadoras de escola; e a filha de uma amiga minha, que está no 9.º ano e tem exames daqui a uns meses, ainda está à espera dos professores de História, de Geografia e de Português", diz.

Às 10h desta segunda-feira, Ana Lídia já tinha deixado a filha no Centro de Actividades de Tempos Livres, que está a pagar do seu bolso, e “que foi onde ela passou a maior parte deste início de ano lectivo”. Vai buscá-la à escola às 15h, apesar de no horário ela ter mais duas horas de aula (de Português). “Não há professores suficientes para dar aulas de substituição, por isso o que vale é que muitos de nós, pais, estamos desempregados e podemos dedicar-nos às nossas crianças”, ironiza.

Bruno, o professor que afinal foi prejudicado
Esta segunda-feira, às 11h, Bruno Florindo, professor, andava pela escola onde foi colocado no dia 12 num horário anual, precisamente através do concurso que se chama BCE, em Vendas Novas, a 300 quilómetros de casa. Na sexta-feira passada, o director telefonou-lhe e deu-lhe a notícia que já estava a abrir telejornais: o Ministério da Educação decidira revogar as listas desse concurso de selecção de professores e anular as colocações, precisamente por causa do tal erro. Mais claramente e para o caso de não ter percebido bem, disse-lhe o director: lamentava, mas estava a comunicar-lhe que já não era professor ali.

Bruno não foi a casa, no fim-de-semana, porque a viagem é demasiado cara para quem não recebeu ordenado e está a pagar quarto e alimentação. E, esta segunda, apresentou-se na escola, como se nada tivesse acontecido. “Estou nervoso e revoltado. Racionalmente, sei que não faço nada aqui, mas vou para onde, faço o quê?”, perguntava, esta manhã. Tem o quarto pago até dia 16 e até lá, pelo menos, tenciona não arredar pé.

Desde dia 15 de Setembro que o professor sabe que há alguma coisa de errado nestes concursos. Quando ele e outra colega de Educação Tecnológica se apresentaram na escola, o director disse-lhes que não sabia o que havia de lhes fazer porque, se era verdade que o Ministério da Educação os colocara ali, também o era que nunca tinha pedido docentes daquela área disciplinar.

Bruno, que tem o curso de Arquitectura e o mestrado em Artes Visuais e está a fazer o doutoramento em História de Arte, já se tinha despedido do emprego de vigilante florestal, e disse que ficava, de qualquer modo. A colega também. E assim foi. “As escolas têm falta de professores: até sexta-feira estive com os alunos do 1.º ciclo, nas actividades de acompanhamento curricular. Agora preparava-me para dar horas extra aos alunos do secundário, que têm exame de Geometria Descritiva no fim do ano”, conta.

Diz que acreditou no ministro "quando ele assumiu o erro na ordenação de professores, no Parlamento, e garantiu que nenhum dos que já estavam nas escolas seria prejudicado". Sente que isso lhe dá direitos. E depois, acrescenta, tem a certeza de que, agora, “ainda são mais os envolvidos nesta história”. E explica: “As pessoas podem imaginar que, como eu e a minha colega fomos colocados em horários que a escola não tinha pedido, o ministério tratou de resolver o problema pondo-nos fora. Mas não é assim tão simples. Pôs-nos fora, mas no nosso lugar foram colocados, na sexta-feira, outros dois professores, que também não foram pedidos, e que hoje ou amanhã se hão-de apresentar para dar aulas a turmas que não existem”, conta. Por isso fica. "A ver no que isto dá". “O MEC não pode brincar com a vida de tanta gente”, diz.

Carlota e Matilde, as meninas sem aulas
Luís Pedro Ramalho, designer, de 42 anos, não faz ideia de quem é Bruno, mas não podia estar mais de acordo com ele. Nem menos revoltado. As suas filhas, Carlota e Matilde, de nove anos, estão no 4.º ano de escolaridade, terão exames no fim do ano e ainda não tiveram um único dia de aulas. Só na escola Actor Vale, que elas frequentam, em Lisboa, há quatro turmas do 1.º ciclo sem professores.

“Já me passou pela cabeça ir levá-las a casa do ministro da Educação e dizer que passo por lá às 17h30, para as apanhar. Para ver se, ao menos, eu consigo trabalhar”, diz. Não se ri. Trabalha como freelancer e há três semanas que tem a vida virada do avesso. Nos primeiros dias tentou manter as coisas controladas: fazer as duas meninas acordarem a uma hora certa, como se tivessem aulas; obrigá-las a fazerem uma cópia, um ditado e umas contas. “Mas não se aguenta assim muito tempo, porque uma coisa é sabermos quando é que esta situação se resolve, outra é vermos os dias a passar e depois as semanas a passar e… nada”, diz.

Pensa que, “ainda assim”, as duas filhas, gémeas, têm a sorte de poderem brincar uma com a outra. Falou com outros pais, cujos filhos não têm irmãos ou os tem na escola e que começam “a ficar verdadeiramente perturbados com esta situação”, conta.

Esta segunda-feira, Luís ainda não ligou para a direcção do agrupamento para perguntar se já há professores colocados. Liga muitas vezes. Não por esperança de que a resposta seja positiva (ficaram de ligar da escola, quando a situação estivesse resolvida), mas apenas para pressionar. “A questão é que também não serve de nada pressionar. Logo se vê. Talvez à tarde ligue para lá, não sei”.

 
Carlota e Matilde à porta da escola fechada

Sara perdeu os seus 135 alunos em 48 horas
“Arrasada, estou arrasada”, diz Sara Botelho, de 39 anos. Tem a voz embargada. “São 13h. Há 48 horas, precisamente, eu era professora de cinco turmas – 135 alunos. Agora sou desempregada”. Sara, como Bruno Florindo, foi colocada através da Bolsa de Contratação de Escola. Estava a dar aulas desde o dia 15 na Escola Secundária de Vale de Ovil, Baião, a 54 quilómetros de casa.

Na sexta-feira à tarde, depois de ser chamada ao gabinete do director, foi despedir-se dos alunos de quem era directora de turma. “Foi um momento difícil – já lhes sabia os nomes, já conhecia os pais, os problemas de cada um. Ficaram tristes e confusos, mas eu estava pior. Senti-me humilhada – como é que se explica aos nossos alunos que o ministério anulou a nossa colocação?”, pergunta.

Os “seus” 135 alunos não terão professor de História hoje e a situação pode não ficar resolvida nos próximos dias. “Os meus colegas que foram colocados na sexta-feira e que uns dias antes tinham sido colocados através de um outro concurso, a Reserva de Recrutamento, têm até às 00h59 desta segunda para decidirem qual das escolas escolhem. Uma delas continuará sem professores mais um tempo, não sei quanto. Será a de Baião?”, pergunta Sara. Faz as contas: “Mesmo que um professor chegue no final da semana, temos de contar com mais uma para a adaptação. Vai ser complicado, quer para o colega quer para os alunos”.

Sara conta que adormeceu, este domingo a pensar processar o ministério. Na manhã desta segunda-feira, um telefonema para o sindicato roubou-lhe as esperanças: “Pelos vistos só tenho direito a reclamar o tempo de serviço, o vencimento e o subsídio de desemprego”, diz. Nada que compense, comenta, o investimento que fez. Emocional, mas não só. Feitas as contas, decidiu que compensava arrendar um quarto em Baião, que está pago até ao fim do mês de Outubro.

Diz que não fez “nenhuma loucura”. “Sabia que havia erros, mas quando ouviu o ministro dizer que os professores continuariam nas escolas, mesmo que tivessem sido colocados com base na fórmula errada, arrendei o quarto. Sempre era um ministro e não estava a falar em qualquer lugar, mas no Parlamento. Mas, agora não confio em mais nada”, diz. É nada que espera, apesar de o MEC ter garantido que depois das próximas colocações (através da BCE e da RR) os casos de docentes nas condições de Sara e de Bruno (pouco mais de 150, diz o ministério) seriam “analisados caso a caso” – “Não, não espero nada. Se pudesse, mudava de profissão”.

Elisa tenta recuperar o tempo perdido 
Se Sara se está a despedir da escola, Elisa Manero ainda se está a instalar. Não foi colocada no início do ano lectivo e os seus 90 alunos ficaram sem aulas de Matemática até ela chegar à Escola Secundária Pedro Nunes, em Lisboa, na quarta-feira passada. Esta segunda-feira percebeu por que é que a maior parte dos miúdos do 10.º ano lhe aparece sem o manual: “Os pais ficaram à espera que aparecesse o professor para saberem se podiam usar o livro antigo, anterior às metas de aprendizagem. A resposta foi 'não' e eles já não encontram o novo nas livrarias”, conta a professora.

É mais uma dificuldade a somar a outras. Desta vez não fez teste diagnóstico, pelo que não faz ideia do que os alunos sabem ou não sabem. Também não está a tirar dúvidas. Não pode perder tempo, explica. A começar mais de duas semanas depois do arranque das aulas, tem de “acelerar” para tentar apanhar os colegas que, naturalmente, já vão num ponto muito mais avançado do programa.

“Já percebi que alguns dos meus alunos tiveram explicações enquanto não tinham professor, mas nem todos os pais têm possibilidade de as pagar pelo que não posso partir desse princípio. Vão todos ter de começar do início e de trabalhar muito, muito, porque daqui a dois anos têm exame e esta matéria conta”, diz a professora de Matemática.

Anita “procura professores”
Anita, com 12 anos de idade, a frequentar o 7.º ano de escolaridade, não tem professor de Matemática. Nem de História, nem de Inglês ou Francês. Este domingo foi com a mãe, Fernanda Diogo, a uma manifestação. Levou um cartaz em que anunciava: “Aluna procura professores”. E esse não é o único problema que afectou este início de ano lectivo, comenta a mãe, antes de relatar uma situação que diz ser “absurda”.

Por falta de 13 funcionários, a escola que Anita frequenta — a EB 2,3 Carlos Ribeiro, no Seixal — funcionou na primeira semana apenas de manhã, na segunda apenas de tarde e em parte da terceira só de manhã, outra vez. Ter ou não ter aulas em determinado dia foi, assim, ditado pela sorte ou pelo azar do horário de cada turma. Por exemplo: quem tinha aulas apenas de tarde à terça-feira na semana em que só houve aulas de manhã, ficou com um dia completamente livre. Uma festa? “Não. Ela está ansiosa por ter uma vida normal”, diz a mãe.

O problema da falta de funcionários ficou resolvido no dia 3, mas o dos professores não. Esta segunda-feira, por exemplo, Anita teve a aula das 8h30 e só voltou a ter professor às 15h30. “Como é uma miúda cheia de sorte”, diz Fernanda Diogo, “foi a casa durante os furos”. “Os colegas que são de longe ou cujos pais não os podem ir buscar por apenas umas horas ficaram por lá, a fazer nada”, compara.

Preocupa-a a falta de igualdade de oportunidades entre as crianças e repete vezes sem conta que a filha é privilegiada. Para além de viver perto da escola e de ter a mãe a trabalhar a meio-tempo (embora não por opção) tem tido apoio, em casa, a História e Matemática, e tem prometida ajuda de uma professora de Francês. “E os outros?”, pergunta Fernanda Diogo.

Anita na manifestação de professores deste domingo em Lisboa


Filipe só teve uma aula
Paulo Cintra Gomes já mandou vários e-mails ao ministro da Educação, Nuno Crato, com conhecimento para os grupos parlamentares e para vários órgãos de comunicação social. Em todos os casos aponta factos e termina escrevendo: “Sem comentários”. Esta segunda-feira, contudo, não resistiu e quis saber: “Estão querer afastar-me da escola pública, é isso? Estão a empurrar-me para o ensino particular?” A razão para o desencanto e para a indignação é descrita nas mensagens electrónicas de forma factual. E a primeira, datada de 14 de Setembro, rezava assim:

“Exmo. Senhor Prof Dr. Nuno Crato, Ministro da Educação e Ciência do Governo de Portugal, O meu filho Filipe (…), aluno do 8.º ano na escola Marquesa de Alorna, em Lisboa, vai começar o ano lectivo sem professores nas seguintes disciplinas: Matemática, Português, Físico-Químicas, Ciências Naturais e Geografia. No primeiro dia só terá uma aula. A minha filha, Isabel (…), aluna do 8.º ano na escola Marquesa de Alorna em Lisboa, vai começar o ano lectivo sem professores nas seguintes disciplinas: Ciências Naturais e Geografia. Por isso no primeiro dia terá dois furos no horário”.

A situação melhorou antes de piorar, como se depreende dos “boletins”, através dos quais Cintra Gomes mantém o ministro informado do que se passa no país real.  A 4 de Outubro, por exemplo, Filipe continuava sem professores a Matemática, Português e Ciências Naturais e Isabel sem aulas de Ciências Naturais, mas ambos tinham professor de Geografia.

Acontece que, entretanto, começou a “dança das cadeiras”, que foi como a Federação Nacional dos Professores chamou à confusão provocada pela solução do ministério, que, para evitar duplicações de professores resultantes do erro e correcção nas colocações, permitiu que aqueles optassem por uma de pelo menos duas escolas em que estão colocados. Conclusão: os dois filhos de Paulo Cintra Gomes perderam, esta segunda-feira, a professora de Geografia.

E foi assim à quarta semana de aulas, Filipe, que está numa turma diferente da sua irmã gémea, só teve professor num dos sete tempos que devia ter ocupados, segundo o horário lectivo que lhe foi fornecido no início do ano lectivo. "Querem empurrar-me para o particular? Preferia não o fazer, mas se tiver de ser, será, vou mesmo. Porque quero que os meus filhos aprendam”, zangou-se o pai.

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