E se um desconhecido lhe disser “vou suicidar-me”, o que lhe responde?
Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte.
A 10 de Dezembro de 2013, um expatriado americano no Japão enviou para um grupo de redactores, muitos deles do Washington Post, uma carta de suicídio. Com o título “Salvar um Legado”, o professor de Inglês e escritor desconhecido de 66 anos, chamado Dennis Williams, redigiu um email arrepiante.
“Este é o meu último dia neste mundo. Estou a contactá-lo por causa de um artigo seu no Washington Post que me deixou impressionado... Estou a pôr fim à minha vida não por desespero, mas porque já disse tudo o que tinha para dizer e considero que o meu trabalho está terminado. Uma vez que ninguém actualmente (nem no passado) está interessado, não tenho qualquer plataforma através da qual me expressar sobre o meu trabalho. Por isso, acredito que tenho muito para dar, não apenas da alma como do coração, mas simplesmente não há ninguém para o receber.”
Era já final da manhã em Minato-ku, no Japão, quando Williams enviou o email. A mensagem chegou ao mesmo tempo a caixas de correio no Japão, China, Los Angeles, Washington D.C. e New Jersey. Dado as 14 horas de diferença para a costa Leste dos EUA, a maioria dos que a receberam ali só a abriram na manhã seguinte. Eu estava acordada até tarde e a ler emails na cama no meu portátil. Abri-o um pouco antes da meia-noite.
“Oh, meu Deus!”, exclamei, sentando-me direita. A comoção repentina chamou a atenção do meu marido. Quando lhe expliquei o que estava a ler, ele nem sequer se mexeu, fazendo em vez disso um barulho entre o desinteresse sonolento e o aborrecimento. É uma piada, ignora-o, disse ele. O meu marido é jornalista de criminologia, e entre os dois tivemos as duas reacções possíveis a um email deste género: horror e cepticismo.
Comecei à procura de sinais no email que indicassem tratar-se de uma farsa. Mas isto não era coisa de um miúdo imaturo ou um monólogo furioso de um homem incapacitado. Não havia referências a extraterrestres nem a controlo de mentes por parte do Governo. Estava bem escrito, ora desolador, ora loucamente autoconsciente.
O autor disse que se chamava Katry Rain, mas explicou que esse era um pseudónimo. Nasceu como Dennis Williams. No momento em que carregou no “enviar”, vivia a dez quilómetros de Minato-ku, a sua última paragem no caminho que o levou de Detroit, onde nasceu a 5 de Julho de 1947, à Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e Japão.
Uma pesquisa na Internet revela que o homem conhecido por Danny, ou Den para os primos de Detroit, acabou por adoptar um pseudónimo porque estava mais de acordo com o seu amor à natureza. Profundamente cristão até à adolescência, mais tarde lançou-se numa espiritualidade que misturava budismo, judaísmo, tauismo e sufismo. Fisicamente, Williams descreve-se assim num post do seu blogue: “Sem aptidões atléticas naturais, nunca tinha lançado uma bola até aos nove anos, e fui agraciado com aquilo que alguns chamam ‘corpo de nadador’ durante toda a minha vida — 1,82 metros e 77 quilos.”
Depois de ter estudado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e feito um PhD na Universidade de Oregon, começou a dar aulas de Inglês no Japão, um país que acabou por abraçar tanto que escreveu um livro, Love Letter to Japan. Depois, planeou morrer ali. O facto de este livro e os outros seis que escreveu terem sido autopublicados digitalmente e pouco lidos está no âmago desta história e do seu desejo de morrer.
Williams passou anos a escrever esses livros ao mesmo tempo que mantinha um blogue e uma página no Facebook. Fiquei a saber de tudo isto a partir do meu portátil, procurando, cada vez mais freneticamente, as pistas sobre que tipo de pessoa envia emails a estranhos a comunicar que se vai suicidar.
Numa conversa, semanas depois, com Christine Moutier, directora clínica da American Foundation for Suicide Prevention, confirmou-se que isto não é nada habitual. As pessoas que pensam em suicidar-se geralmente não pedem ajuda a estranhos escrevendo-lhes a anunciar a sua decisão. Isto era obra de alguém rebuscado, narcisista e megalómano.
Mas na noite em que o email chegou as minhas perguntas eram urgentes: ele estava a falar a sério? E o que esperava que eu fizesse? Sem eu saber, estas mesmas perguntas estavam a ser feitas pelos outros escritores que olhavam incrédulos para os seus computadores.
A minha pesquisa levou-me aos posts solitários de Williams, que aparentemente nunca tinham sido visualizados. Longas peças sobre o coração humano, a literatura, a cultura americana comparada com a cultura japonesa, o papel da tecnologia na vida moderna — tudo sem ter recebido qualquer comentário.
Quando voltou a publicar essas peças no Facebook, seguiam-se ocasionalmente meia dúzia de likes. Era um William Loman [personagem de Arthur Miller, um homem solitário que tenta suicidar-se várias vezes] com WiFi, a exigir que lhe prestassem atenção. Ninguém prestava. E foi isto, dizia ele, que o levou até àquele email e ao seu suicídio iminente.
“Em todos os meus anos de escrita, só um livro meu foi publicado, uma peça produzida e talvez meia dúzia ou mais de artigos de opinião publicados em jornais”, escreveu Williams. “O meu principal trabalho — três livros filosóficos e cinco romances que saíram daí — passaram despercebidos. E no entanto, porque eu acho que eles são particularmente importantes para nós neste momento fulcral da história da humanidade, escrevo aqui sobre eles para que com a vossa gentileza e a minha boa sorte possam sobreviver um pouco, possivelmente passados para outros leitores e serem considerados valiosos e úteis para uma geração no futuro.”
Ele já tinha desistido de tentar.
Naquela noite, pela primeira vez na minha vida adulta, eu não tinha a mais pálida ideia sobre o que fazer em relação àquela situação. Nenhum instinto. Nenhum caminho que eu sabia ser duro ou arriscado, mas que seria o certo.
Opção 1: Não fazer nada
Poderia ser apenas um grito para chamar a atenção de alguém com um sentido de humor perverso. Chamar a polícia não era uma opção porque ele estava no Japão, eu em Maryland e não falo japonês. Mandar-lhe um email poderia ser colocar-me, a mim e à minha família, numa situação potencialmente arriscada, embora retrospectivamente eu não tenha bem a certeza da razão pela qual achei isso.
Williams referiu um artigo sobre ele no Washington Post na década de 1970. Tal como tudo o resto no email, eu queria que fosse mentira. Não era. Uma busca rápida no arquivo e 3,95 dólares depois lá estava ele no ecrã.
A fotografia a preto e branco que acompanhava o artigo, publicado na secção Estilo e escrito pelo jornalista Michael Kernan a 24 de Maio de 1972, mostrava o mesmo Williams que agora sorria no seu blogue. Tinha vinte e poucos anos, um sorriso largo, as mãos confiantemente pousadas nas ancas, à frente dos portões da Casa Branca. Tinha vindo entregar uma mensagem ao Presidente Richard Nixon, com um livro autografado.
Isto chamou a atenção de Kernan, mas como ele morreu em 2005 não ficou claro porquê. Kernan descrevia Williams como um jovem bronzeado e magro, que escalou o monte Whitney, andou à boleia em dois continentes e atravessou o Sara num camião argelino com ovelhas. Aqui estava o arquétipo do jovem idealista. Um professor de liceu de Hollywood de 24 anos que tinha passado 106 dias a caminhar do cais de Santa Mónica [na Califórnia] à Casa Branca [na outra costa dos EUA]. As palavras de Williams para Kernan eram sinceras e amáveis, apesar de ter lamentado que não tenha havido mais jornalistas a aparecer a esperá-lo.
“Acho que o Nixon não percebe porque é que ainda há revolta no país”, disse Williams ao jornalista. “Acho que a filosofia por detrás do Governo e instituições americanas está errada e eu queria explicar porque é que precisamos de mudar.”
“Isto é algo que eu tenho de exprimir”, adiantava. “Pode ser que ninguém se interesse, mas tenho fé nas pessoas.”
Quatro décadas mais tarde, a sinceridade deu lugar à resignação. Williams conclui o seu email com esta frase: “Não lhe estou a pedir nada, apenas espero que ao lançar este apelo as ideias possam de alguma forma sobreviver. Acredito nas ideias e em que elas podem realmente mudar o destino da humanidade.”
Pelo menos, algo da fé de há quatro décadas sobrevivera.
Depois de ficar sentada na cama a traçar o seu percurso, fiquei irritada. O egoísmo de alguém que larga esta confusão psíquica no colo de uma total desconhecida era demais. E por quê? Porque a sua escrita e as suas ideias não tinham recebido a atenção que ele achava que merecia.
Aquela escrita não era particularmente notável. Volumes inconsistentes sobre filosofia e natureza, e a sua visão do mundo, articulados mas desinteressantes. Ele queria dar que pensar mas ficou a um passo de provocar um revirar de olhos.
“Quem faz uma coisa destas?”, perguntava a mim própria. Fechei o meu computador. Fui dormir.
Cerca de dez horas depois, a meia dúzia de redactores que enfrentava o mesmo dilema abordava-o de maneiras diferentes.
Em Tóquio, um jornalista do Post enviou um email a uma mulher a que Williams se tinha referido na sua mensagem. E também notificou a polícia local e a embaixada dos EUA.
Na China, um repórter do Post fez o mesmo, reenviando o email de Williams para a mulher e pedindo desculpa por estar a incomodá-la. “Não sei porque é que ele me contactou”, escreveu, fazendo eco de uma coisa que se tornava um tema entre a relutante fraternidade de repórteres que tentavam descobrir como responder ao email.
Na sua casa na zona de Washington, o jornalista do Post Paul Farhi tinha a televisão ligada ao mesmo tempo que lia os seus emails naquela manhã. Abriu a mensagem de Williams. O tema não lhe era estranho, uma vez que pessoas muito próximas dele se tinham suicidado. De todas as respostas — medrosas, a desculpar-se, descrentes, tímidas — a de Farhi era a mais directa. O jornalista veterano não teve medo de se relacionar com Williams. Não viu nenhum risco resultante de nada a não ser a falta de um gesto, por isso respondeu-lhe imediatamente.
“Não o conheço a si nem à sua vida ou trabalho, mas peço-lhe fortemente que reconsidere o desejo de acabar com a sua vida”, escreveu Farhi. “Pode já não ter nada para dar a este mundo, mas este mundo ainda tem coisas para lhe dar a si. Pode não estar a sofrer, mas certamente provocará sofrimento com a sua partida. Digo isto como alguém cuja vida foi profundamente afectada por aqueles que partiram precocemente. Ligue imediatamente para um amigo, um familiar, um padre, um médico ou ‘para qualquer outra alma caridosa’”, implorou-lhe Farhi antes de se despedir, desejando-lhe “paz e força para continuar a tentar”.
O que impressionou Farhi foi o tom racional e calmo de Williams. Ele escreveu como se tivesse “pesado os riscos e os benefícios”, afirma. Estava controlado, mas claramente desesperado. “A outra parte da minha reacção é óbvia: ‘Mas por que raio me estás a contar isto? Quem sou eu para ti?’”
Farhi nunca teve resposta e passaram-se meses até sabermos o que aconteceu a Williams.
Em New Jersey, a romancista Dara Horn abriu o email e ficou irritada. “Parecia um ataque emocional”, diz.
Ocorreu-me que “ataque emocional” era o que estava mais próximo da minha própria mistura entre raiva e ansiedade quando recebi a mensagem.
“Achei que isto era muito injusto”, continua Horn. “‘Leia este livro ou eu mato-me.’ Pode ser que essa não fosse a sua intenção, mas foi isso que eu senti... De repente, sou responsável se esta pessoa morrer.”
O grito de chamada de atenção de Williams fez lembrar Horn da leitura de um livro que ela tinha feito uma vez com o romancista Michael Chabon, que escreveu vários best-sellers. Alguém perguntou a Chabon, autor de Wonder Boys (sobre um escritor que tenta acabar o seu difícil romance), o que é que ele gostaria que fosse escrito na sua lápide.
“Lembro-me de pensar que aquela pergunta era tão parva”, conta Horn. “Não por ser mórbida. Mas a assunção por trás dela. Como escritores, aquilo que escrevemos é que é o nosso legado.”
Mas Horn, que está na casa dos 30 anos, reconhece que tem tido sorte por ter leitores interessados no seu legado. Aos 66 anos, Williams não tinha.
Entre os receptores dos emails, eu e Horn somos uma espécie de excepção, por não sermos jornalistas do Post. Mas, no email que me enviou, Williams referiu um artigo de opinião que escrevi para o jornal em 2013 sobre a resposta do país ao massacre de Navy Yard.
Quando perguntei a Horn qual era a sua teoria sobre como Williams tinha chegado ao seu contacto, ela não soube responder imediatamente. Mas depois lembrou-se de um artigo que escreveu no Post e que foi publicado no mesmo dia que o meu sobre o impulso da nossa sociedade de catalogar cada momento das nossas vidas na Internet. Questionava o objectivo disto tudo com o título: “Quando guardamos todas as memórias, esquecemos as que são especiais.”
Horn perguntava-se se não estaríamos próximos dos faraós egípcios que se preparavam em peso para a vida depois da morte para provar o seu valor. “Porque é que despejar informação nos parece tão atraente e necessário?”, escreveu Horn. “Talvez seja o medo da mortalidade.”
A 29 de Março de 2013, Williams publicou um post no blogue intitulado “Pensamentos sobre o meu legado enquanto escritor”, que deixa pistas sobre o seu próprio despejar de informação e um vislumbre da sua tendência para oscilar entre a consciência de si próprio e o seu narcisismo. Dizia detestar a autopromoção e depois virava-se para as redes sociais tornando-se o seu próprio publicitário. Jurava não ser arrogante, mas escrevia: “Como é que vejo o meu trabalho no esquema geral das coisas? Suponho que de duas maneiras: o que deixei para trás e o efeito que terei nos outros.”
Quando recebeu o email de Williams, Horn decidiu contactar a embaixada americana no Japão depois de pensar como “convencê-lo do contrário”. Ligar para a embaixada fê-la sentir-se pequena, diz.
Mas foi um passo simples que nem sequer me ocorreu.
Na verdade, só quando escrevi sobre esta história é que finalmente lhes liguei. Um responsável do consulado americano disse-me que é frequente americanos morrerem no estrangeiro. Os suicídios acontecem. Há depois um processo. Depois de momentos de desordem e caos pessoal, seguem-se horas e dias de ordem. Não podia confirmar se Williams tinha morrido ou se tinha havido algum suicídio.
Opção 2: Fazer alguma coisa
Quando acordei, na manhã seguinte, voltei a fazer-me a mesma pergunta: “Quem faz uma coisa destas?” Mas desta vez cheguei a uma resposta. Alguém que precisa de ajuda. Censurei-me por ter ido dormir sem ter feito nada.
Se Williams tivesse estado à porta de minha casa ameaçando matar-se, eu teria chamado a polícia. Se um membro da minha família ou amigo pedisse ajuda a estranhos, eu gostaria que alguém o ajudasse. A ameaça de suicídio, só por ter chegado num ecrã, não me conferia a hipótese de não intervir.
Mandei uma mensagem privada através do Facebook a uma mulher que partilhava o apelido de Williams e que interagiu com ele em alguns dos seus posts no Facebook. Nos comentários parecia amável, respondendo animadamente a actualizações, incluindo fotos dele sozinho em locais cénicos no Japão. Expliquei a situação, desculpei-me pelo conteúdo da minha mensagem e fechei o computador.
Durante a noite tinha nevado, a ponto de fechar Washington. Eu e a minha filha de quatro anos fomos para a rua brincar, fazer anjos na neve naquela manhã cinzenta e nevosa. Quando estava deitada, olhei para cima e pensei em Williams. Fechei os olhos na esperança de que não acontecesse o pior.
Passaram-se dias até ficar a saber que aconteceu o pior.
Foi pela sobrinha de Williams, com quem comuniquei por Facebook. Numa mensagem enviada oito dias depois, agradeceu-me por lhe ter contado do email que ele enviara. O tio, disse ela, tinha-se realmente suicidado, saltando de um prédio horas depois de o enviar.
Meses mais tarde, dei esta notícia ao editor literário do Post, Ron Charles, tal como dera a todos os outros receptores do email que contactei para escrever este artigo.
Charles tinha aberto a mensagem de manhã quando rondava pela casa de roupão. No meio do monte habitual de emails, a mensagem de Williams chamava a atenção de forma arrepiante. Charles identificou um tipo de desespero, ainda que numa forma particularmente extrema, que vê com regularidade na sua qualidade de “porteiro” daqueles que pretendem tornar-se o próximo fenómeno editorial.
Quando meses mais tarde nos encontrámos para conversar sobre o email, confessou que o desespero é uma das razões pelas quais já nem atende o telefone.
“Cada vez há mais pessoas desesperadas por atenção a escrever e nós simplesmente já não temos essa atenção para dar”, afirmou. “Independentemente de quão ricos ou educados nos tornamos, só temos 24 horas. E, com toda a gente a promover-se em todas as redes sociais possíveis, todos tão desesperados por sermos lidos com atenção, eu incluído, com todos nós a viver e morrer por um clique na nossa história, este é um exemplo extremo e terrível do que toda a gente sente: ‘Porque é que não estão a olhar para mim?’”
É de uma estranheza sem precedentes que na nossa cultura actual praticamente qualquer pessoa consiga publicar um livro. Antes, autopublicar significava reunir fundos para pagar uma vaidade. Cópias baratas chegavam numa caixa e ficavam sem ser compradas durante anos na sala de estar do autor. Agora, a Internet torna a autopublicação quase imediata, com apenas alguns cliques.
Há casos excepcionais em que a fama se segue a esses cliques, sendo o mais notável o da E. L. James e As Cinquenta Sombras de Grey, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas para a maioria dos autores, simplesmente, não há resposta. O próprio Williams, num post, recordou ter ficado ligeiramente destroçado há alguns anos depois de uma pequena editora ter publicado um dos seus livros, The Water Book, e de este não ter recebido qualquer atenção. Talvez os colegas do trabalho e amigos tenham vacilado por causa do preço, disse ele. Numa altura em que os livros se vendiam a 10 dólares, o seu custava 29,95. Acabou por vender ou dar 60 cópias antes de deixar um caixote com os livros nos degraus de uma livraria durante a noite.
“As pessoas que conseguem fazer dinheiro com a venda de livros que auto-editam acabam por criar nas outras expectativas irrealistas”, afirma Charles. “E isso também é incentivado por nós, os media, porque escrevemos histórias sobre os poucos autores famosos que publicaram eles próprios os seus livros e se tornaram best-sellers.”
Como a maior parte dos que receberam o email de Williams, Charles interrogou-se se aquela seria uma piada de mau gosto. “Mas, mesmo que fosse falso, era um penoso grito de ajuda”, comenta.
Sem saber que já era tarde demais, reencaminhou-o para a mulher citada na mensagem.
No outro extremo, a mulher, Keiko Sato, sabia que era tudo menos um embuste. Sato era ex-mulher de Williams. Durante décadas ouvi-o falar de suicídio, intercalado com o desejo de que a sua escrita fosse conhecida.
“Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele o faria”, diz Sato, falando-me por telefone numa tarde a partir da sua casa em São Francisco.
Esta professora de Japonês conheceu Williams na década de 1970 quando ele era seu aluno e estavam os dois nos seus 30 anos. Casaram-se e ficaram juntos durante várias décadas antes de, devagar e amistosamente, se afastarem e Williams lhe pedir o divórcio.
Recorda o ex-marido como um filósofo, um pensador, um escritor não apenas de palavras mas também de música. Um professor de Inglês popular, com alunos que o adoravam. A família dela no Japão continuou amigável, apesar de poder correr com ele por se ter divorciado. Tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na próstata um ano antes de morrer, mas não fez qualquer tenção de se tratar.
Cerca de oito meses antes de se suicidar, anunciou no seu blogue que tinha cancro e fez referência a uma conversa com um amigo 25 anos antes. No seu livro digital Love Letter to Japan, diz que essa conversa ocorreu com um primo. “Eu disse-lhe: ‘Quando achar que o meu trabalho está terminado, será uma boa altura para morrer.’ E agora acho que o meu trabalho está terminado, por isso está na altura de morrer.”
Apesar de Sato ter lido os seus romances — um foi iniciado assim que o anterior estava terminado, recorda — nem sempre os admirava. Num deles, escrito depois do divórcio, havia detalhes terríveis e íntimos sobre a sua vida. “É uma questão de privacidade”, comenta.
Testemunhou as décadas de frustração por a sua escrita não ser reconhecida. Recorda-se de já em 1983 ele ter dito que se não tivesse sucesso era bem capaz de se suicidar. Entre 1988 e 1992, quando o casal vivia em Seattle, houve um período particularmente agudo de depressão. Mas nas últimas mensagens que ele lhe enviou, em finais de 2013, Sato ficou surpreendida com a mudança.
“Acho que no final ele não estava deprimido”, afirma. “Queria terminar o seu trabalho. Sentia que tinha conseguido o que realmente desejava fazer na vida, ainda que a sua escrita não fosse reconhecida.”
Um amigo de Williams no Facebook deu ecos disso mesmo num comentário na sua página no dia em que ele morreu. “Ontem, ele escreveu um post de que aquele seria o seu último dia na Terra”, escreveu o amigo, referindo-se a Williams pelo seu pseudónimo. “Para muitas pessoas, isto pode ter sido uma crise emocional, mas qualquer pessoa que conhecesse Katry perceberia que isto tinha sido uma coisa pensada durante muito tempo.” Elogiou-o como um professor excelente e altamente respeitado, bem considerado pelos colegas, um homem com qualidades e uma grande calma, com capacidade de se relacionar com os outros e, o que para Williams seria o mais importante, um escritor.
Apesar de Sato e Williams terem mantido contacto por email três ou quatro vezes por ano, há dez anos que ela não o via. Quando recebeu o email suicida, ligou para o hotel onde ele vivia no Japão para que um empregado fosse ver se ele estava bem. Não mencionou a palavra “suicídio”, referiu apenas que estava preocupada com ele. Williams estava bem, afirmou Sato.
No dia seguinte, começou a receber uma quantidade anormal de emails de estranhos enviados de vários sítios do mundo — os jornalistas que tinham recebido aquele que era realmente o seu último mail.
Na caixa correio electrónico estava uma mensagem do consulado americano dando conta de que Williams tinha morrido, conta. Saltou do telhado do seu hotel.
Sato contactou o irmão dele, Albert, na Califórnia. A família não foi buscar as cinzas porque ele tinha deixado uma nota a indicar que queria ficar no Japão. (Albert Williams não quis prestar declarações para este artigo.) O irmão enviou-lhe alguns dos objectos do ex-marido, que achou que ela gostaria de ter.
Será que Sato carrega alguma culpa por este último capítulo da vida de Williams?
“Eu não podia impedi-lo de morrer”, diz. “Ele é o tipo de pessoa muito independente e quando decide uma coisa é quase impossível demovê-lo.”
Encontro algum conforto nisto, vindo da mulher que o conhecia melhor do que ninguém. O que ligava Ron Charles, Dara Horn, Paul Farhi e eu era a crença de que poderíamos ter feito alguma coisa. Sato dizia-nos que não teria feito diferença.
Dada a diferença horária e a distância, e o seu passo audacioso de enviar emails a jornalistas que não tencionavam sinceramente intervir, parece plausível que a mensagem não fosse um pedido de ajuda, que ele não tivesse qualquer esperança de desencadear uma missão de salvamento internacional. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita.
Ao longo da sua vida enquanto escritor, “ele tentou quase de tudo”, conta-me Sato. “Então, esta talvez fosse a sua última esperança. Que alguém reconhecesse que aquela pessoa era um escritor e que valia a pena perceber o que ele tinha para dizer.”
Mas Moutier, da American Foundation for Suicide Prevention, não dá tanto conforto. “O mito é as pessoas acharem que se alguém está mesmo inclinado a matar-se nada a deterá”, afirma. “Mas isto é incorrecto sob vários aspectos. Não diríamos isso sobre outro tipo de doença com consequências fatais. E, em segundo lugar, contraria a prova de que quando as pessoas conseguem ultrapassar este apelo intenso [de morrer], muitas vezes sentem vontades diferentes depois.”
Moutier refere a nossa tendência moderna de partilharmos demais e, ironicamente, nos isolarmos na tecnologia. Falámos sobre o facto de o último apelo de Williams ter sido feito a estranhos. Confessei que fiquei relutante de responder ao email, por medo de correr algum risco ou parecer tonta.
“Como americanos, temos muito pudor em intervir porque temos medo de nos estarmos a intrometer ou ofender”, diz. “A nossa cultura não ajuda porque nos diz que somos todos ilhas, responsáveis por nós próprios. É um fenómeno esquisito, acho, por causa dos nossos ambientes electrónicos. A condição humana faz de nós criaturas sociais e pedir ajuda assim foi a sua forma de se ligar.”
Não passa despercebido que ao escrever sobre o suicídio de Williams lhe estou a dar aquilo que ele desesperadamente queria. Esta história vai tornar-se agora parte da sua narrativa digital. Provavelmente será lida por muito mais pessoas do que qualquer coisa que ele tenha escrito ao longo dos seus 66 anos. Será dissecada, receberá likes e será partilhada ou deitada para o lixo.
Seja como for, esta peça conseguirá uma coisa que Williams queria quando carregou no botão “enviar” do email na manhã em que se suicidou: resposta. Reconhecimento.
“Tudo o que escrevi na minha vida escrevi para si”, escreveu ele no último ano de vida numa entrada do blogue intitulada “The end of the road” [O fim da estrada].
“Se acabar por ser como um presente de Natal que não desejamos, peço desculpa. Tentei dar-lhe aquilo que pensava que precisava, não o que queria.”
Exclusivo PÚBLICO/Washington Post