E se no futuro uma mãe achar que um filho baixo é um filho doente?
A medicina vai ser personalizada, mas será sobretudo participativa. De mandões e autocráticos, os médicos irão converter-se em conselheiros.
O cientista israelita terá deixado inquieta a plateia que no sábado à noite quase encheu o auditório do Teatro Municipal Rivoli, no Porto, ao não responder afirmativamente à pergunta “Todas as doenças terão cura no futuro?” A questão era o ponto de partida de mais uma sessão do Fórum do Futuro, um festival de pensamento promovido pelo pelouro da Cultura da Câmara do Porto.
“Não tenho a certeza de que conseguiremos viver num mundo livre de qualquer doença”, começou por admitir Aaron Ciechanover, que em 2004 foi distinguido pelo estudo que levou à descoberta do processo de regulação da proteína ubiquitina (o que, dito de uma forma simples, permitiu perceber a forma como as células se auto-limpam).
A medicina vai mudar e a própria definição de doença também, justificou o investigador israelita. “Em breve vamos começar a alterar os genes, é algo que já acontece, no meu laboratório já o faço com moscas e ratinhos (retirar o gene errado, pô-lo no lixo, colocar o gene bom)”, descreveu.
Consequências? “A definição de doença vai mudar, a palavra vai ter outro significado”, prosseguiu, avançando com exemplos bem concretos: uma mãe que quer um filho com 1,80 m, outra que sonha com uma filha de cabelo louro. Se os seus desejos não se concretizam, “aos olhos delas isto será encarado como doença”.
Para uma plateia que estaria à espera que a sossegassem com a cura futura para todas as doenças, o rumo que a sessão tomou foi algo desconcertante. “Estou a falar da escolha das características que queremos para os nossos filhos. E, quanto mais sofisticados os diagnósticos e os instrumentos, mais a definição de doença se alterará no futuro”, alertou.
Vivemos já uma nova era: “O primeiro genoma demorou sete anos a concluir e custou mil milhões de dólares. Hoje, posso fazer um genoma humano por 500 dólares e prevê-se que o preço baixe para os 200 dólares”, lembrou o investigador, notando que o valor é inferior ao de uma trivial ressonância magnética. “Esta questão particular é muito sensível, estamos num campo movediço”, constatou, defendendo que “a ética vai ter que se adaptar à tecnologia”. Mas Aaron não tem uma visão catastrófica do futuro: “Somos uma sociedade misericordiosa, não somos nazis, não vamos limpar a sociedade.”
Para enquadrar a sua visão dos tempos que se avizinham, Aaron, que tem 67 anos, fez uma breve incursão no passado. “Há 150 anos, as pessoas viviam 50 anos em média, morriam de doenças infecciosas e por causa de guerras fratricidas. Com o aparecimento do raio X e dos antibióticos foi possível alargar a longevidade para os 80 anos. Agora, é evidente que não há almoços grátis. Vivemos mais, mas enfrentamos doenças degenerativas como cancros e Alzheimer. Se pensarmos numa longevidade de 120 anos no futuro, não sei o que poderá surgir.”
Medicina de precisão
Sobre a medicina do futuro, o investigador disse acreditar que o próximo passo consistirá em ter “uma ideia exacta antes de começar um tratamento, saber como é que as pessoas vão reagir, definir o chamado tratamento personalizado que se adaptará ao ADN de cada um”.
“Quando se fala em medicina personalizada, as pessoas pensam: finalmente o meu médico vai ser mais simpático”, ironizou, recordando os tempos em que estudou medicina e em que “os médicos eram autoritários e patriarcais”. O que a revolução em curso significa é que o médico se vai tornar “muito mais técnico e muito mais sofisticado". "Em vez de tratar a minha doença, vai tratar-me”, sintetizou.
Além de personalizada, acrescentou, a medicina passará a ser “mais preditiva e mais participativa, mas participativa será a palavra-chave”. Quanto ao médico, ao deixar de ser “o grande patriarca e o mandão, converte-se em conselheiro” e o paciente passa a participar no processo de decisão. Aaron deu o exemplo da actriz norte-americana Angelina Jolie que, em 2013, decidiu remover os dois seios por uma questão de prevenção, de forma a minimizar os riscos de vir a padecer de cancro, tendo em conta o seu histórico familiar.
Mais do que uma medicina personalizada, vamos ter “uma medicina de precisão”, corroborou o director Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, Manuel Sobrinho Simões, que, com o físico e biólogo Alexandre Quintanilha, tinha a tarefa de dialogar com o cientista israelita.
Tentando regressar ao tema da conferência (pretendia-se discutir também o permanente processo transformativo do corpo humano), Sobrinho Simões lembrou que “todos os dias mudamos 8% da nossa constituição proteica e que perdemos 2 mil quilogramas de células do nosso corpo durante a nossa vida”. Ou seja: ao longo dos anos, vamos ficando diferentes. Por isso os médicos vão no futuro tratar a pessoa, na sua idade, no seu contexto e com as suas influências genéticas, sintetizou.
Chegando a interromper o cientista convidado para o avisar de que estava a assustar a plateia com as imensas possibilidades de utilização dos avanços dos estudos genéticos, Sobrinho Simões rematou a sessão pedindo às pessoas que pensem sobretudo na educação e no trabalho. “Esqueçam os genes”, aconselhou.