Desqualificações

Em Portugal, a meio da década de 1990, quando as raparigas ultrapassaram os rapazes no acesso ao ensino superior, surgiram uns curiosos que atribuíam o presumível insucesso dos rapazes às hormonas, como se os que chegavam a esse nível de ensino não as tivessem também. Quem defendia estas posições não parecia ter olhado para as estatísticas que mostravam uma perda de efectivos do sexo masculino no fim da escolaridade obrigatória que tornava as raparigas num grupo claramente maioritário no fim do secundário. E porque tinham eles abandonado a escola? Porque o mercado de trabalho os acolhia de braços abertos, em particular nos sectores de mão-de-obra intensiva, com forte incidência na actividade económica, gratificando assim a falta de qualificações.

A ideia de que há trabalhos que só exigem a força física e que dispensam o esforço intelectual e o desempenho qualificado perdurou demasiado tempo, num país onde, é bom não esquecer, a ditadura se apressou a reduzir os quatro anos de escolaridade obrigatória, instituída pela República, para três anos, com o claro propósito de manter a população bruta e ignorante e fazer da educação um privilégio das chamadas elites que cultivavam o distintivo título de doutores. A reposição dos quatro anos de escolaridade obrigatória e até o seu prolongamento, nos últimos anos do anterior regime, já não foram a tempo de recuperar o enorme fosso que entretanto distanciara o país dos outros países desenvolvidos.

A recuperação deste profundo atraso obrigou a uma corrida acelerada dos governos democráticos, apesar dos muitos obstáculos encontrados pelo caminho, como o persistente abandono escolar e as lutas políticas e sindicais que elegeram o sistema educativo como terreno privilegiado. Foi preciso chegar à transição do século para começar a notar os efeitos do esforço de melhoria da educação e assistir à difusão da exigência de qualificações na sociedade.

Nos últimos anos tínhamos assistido à implementação de políticas que não só contribuíam para a dignificação e modernização do sistema educativo, de que a diversificação da oferta de cursos profissionais no secundário é apenas um exemplo, como visavam combater os erros do passado, abrindo novas oportunidades de retorno à escolaridade às gerações que dela tinham sido precocemente afastadas. Estas eram medidas claramente orientadas para reduzir o enorme défice de educação de nível secundário na população.

Subitamente, porém, tudo mudou. Sem que houvesse qualquer esforço de avaliação das medidas em vigor e apesar dos resultados que começavam a surgir, para Portugal, em comparações internacionais do desempenho escolar, e que o actual governo fez questão de ignorar, mudou-se o rumo. O ensino profissional passou a ser uma saída para os maus alunos e as oportunidades de educação para os adultos fecharam para revisão.

Dizem-nos que passarão a ser mais exigentes. O que quer isso dizer? Exigentes porque se introduzem exames? Desde quando a existência de uma prova selectiva é sinal de exigência? Sinal de selecção é-o sem dúvida, mas esta pode ser feita de muitas formas e a exigência é apenas uma delas, a mais comum é simplesmente excluir pessoas do sistema.

O empenho em destruir algumas medidas que representavam um progresso na educação, pela determinação em combater os efeitos da herança do passado, sem que se vislumbrem alternativas com o mesmo propósito, representa um retrocesso e recupera um elitismo salazarento que se julgava ultrapassado. Porque o que é preciso são elites que se distingam pelas suas capacidades de racionalidade e esforço para construir um projecto mobilizador de desenvolvimento para o país, não elites que só devem a sua posição à existência de uma massa desqualificada.

Psicóloga social e professora catedrática do ISCTE
 
 
 

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