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Da vontade das mulheres

Amanhã será votado o alargamento do acesso às técnicas de procriação medicamente assistida a todas as mulheres.

Portugal está prestes a atingir o primeiro patamar da igualdade – aquele onde a posição perante a lei é exatamente a mesma para qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual ou de qualquer categoria de discriminação. Foram muitos os degraus para aqui chegarmos. Na semana passada, foi dado um passo fundamental com o alargamento do acesso à candidatura à adoção a todos os casais; amanhã será votado o alargamento do acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) a todas as mulheres. 

Até hoje, Portugal escolheu proibir (e punir) o acesso de algumas mulheres - todas as que não estejam casadas ou unidas de facto com homens - a tratamentos de fertilidade e a técnicas tão simples quanto a inseminação artificial. Porquê limitar a aplicação de técnicas de PMA existentes a casos clínicos de saúde reprodutiva em contexto heterossexual quando o acesso democratizado às mesmas servirá para ajudar a fazer nascer mais crianças – e em última análise para tornar mais pessoas felizes? Até agora, e desde 2006 (ano da primeira lei sobre PMA), esta pergunta tem ficado sem resposta. Aliás, aquando da votação em 2012 de projetos que pretendiam alargar o acesso a estas técnicas a todas as mulheres, Eurico Reis, atual Presidente do Conselho Nacional para a Procriação Medicamente Assistida, perguntava precisamente se seria legítimo usar o poder repressivo do Estado para veicular preconceitos. A resposta é simples, e é a mesma, desde sempre – não, não é.

Desde logo, a vontade de discriminar e de, pelo Estado, impor preconceitos sobre o que deve ser uma família não é legítima e tem sido crescentemente contestada – porque o alargado debate dos últimos anos tem mostrado o consenso científico sobre o exercício da parentalidade por casais do mesmo sexo, mas também porque é hoje claro para grande parte das pessoas que a igualdade perante a lei é uma questão de Direitos Humanos. A vontade de discriminar já não é, portanto, aceitável. A partir do momento em que é claro que a validade de uma família não assenta na orientação sexual das pessoas adultas mas sim nas relações de amor e respeito que prevalecem no núcleo familiar, é impossível também manter uma posição limitada sobre a finalidade da utilização das técnicas de PMA. 

Infelizmente, não surpreende que a orientação sexual esteja tão claramente presente nos últimos resquícios legais de um quadro legislativo que apenas há uns anos era fortemente discriminatório. Mas na verdade também não surpreende que a última discriminação na Lei – a que impede mulheres de acederem a um procedimento médico simples – recaia sobre mulheres. Desde logo lésbicas, claro, porque também diz respeito a casais de mulheres; mas sobretudo a mulheres, a qualquer mulher que tenha vontade de engravidar e não o queira fazer com um homem.

Será sequer discutível a ideia de que as mulheres devem poder decidir iniciar uma gravidez com recurso às técnicas médicas existentes? A resposta a esta questão parece-me também simples e muito óbvia: não. Trata-se de respeitar a vontade de uma mulher - ou de duas mulheres. Talvez seja este o motivo para que esta seja a última discriminação a cair. Ao contrário da candidatura à adoção, onde a discriminação existente dizia respeito a casais de mulheres ou de homens, o acesso às técnicas de PMA diz respeito apenas a mulheres, nomeadamente a mulheres cuja vontade de serem mães pode não depender de homens. Que homofobia e sexismo andam a par, não é novidade. Que o machismo esteja tão profundamente enraizado talvez seja surpreendente. 

A ILGA Portugal tem feito ao longo de muitos anos vários comunicados públicos sobre este assunto, na maioria dos quais a referência a Espanha é obrigatória; porque na verdade, no país vizinho desde 1988 que as técnicas de PMA estão disponíveis para qualquer mulher que as queira utilizar. 1988: significa que uma criança gerada nessa altura tem hoje 27 anos. Espanha compreendeu há quase três décadas a mais simples noção do que deve ser respeitar a vontade das mulheres – e desde aí, tem servido como porto de abrigo a milhares de mulheres portuguesas, muitas que atravessavam a fronteira para interromper uma gravidez, e outras que ainda a atravessam para poder iniciar uma gravidez.

O nosso país está agora em condições de, pelo contrário, passar a respeitar as nossas vontades, os nossos direitos, a nossa autonomia, a nossa saúde sexual e reprodutiva. 

A partir de amanhã, sim, Portugal será um país que garante direitos iguais a todas as pessoas – e cuja lei não retira dignidade nem humilha ninguém. A partir de amanhã, seremos iguais perante a lei. A partir de amanhã, qualquer lei que seja feita passa a ser feita para incluir todas as pessoas porque a discriminação na lei nunca mais será sequer tolerável. A partir de amanhã, todas as vontades contam. Sim, as das mulheres também.

Presidente da Direcção da ILGA Portugal

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