cRato (com "c" mudo) e a privatização do Iave
A única surdez, aqui, é a do poder político perante o clamor do senso comum.
O target de cRato tem latitude máxima, desde o primeiro ciclo do ensino básico, em que as crianças desestabilizam a aprendizagem da ortografia da sua língua materna (já prejudicada pelo "acordo ortográfico") através dos testes escritos do Inglês obrigatório, até ao ensino superior, com as aulas leccionadas em Inglês obrigatório (por professores portugueses e para alunos portugueses) dos cursos superiores com denominações em Inglês, em universidades que contam agora com uma saloia designação "international" também, para não destoar. Assim se pretende preparar uma geração para ser "mentalmente colonizada". Consenti-lo-emos?
Uma nódoa "assertiva" e "pró-activa", que "implementa" coisas, pode ter barbas. Neste caso, tem barbas (em ambos os sentidos), e estará há muito em estado demissionário-vegetativo, mas consegue manter um esgar vagamente sorridente, invertebradamente autista.
Diante disto, resta a uma cidadã indignada atrever-se a abrir algumas "caixas de Pandorra" (cRato dixit "twice"!). Se não resgatar o património colectivo que mais valoriza (o Português-padrão consuetudinário), pelo menos conservará intacto o seu mais precioso património individual (uma consciência tranquila).
Importa ver além da opacidade das paredes dos gabinetes das Avenidas 5 de Outubro e 24 de Julho... Para as questões relacionadas com o ensino da Língua Portuguesa, cRato socorre-se da opinião de duas linguistas, cada uma delas gerindo "feudos próprios" há muito instalados no Ministério da Educação. Uma delas é Inês Duarte, com uma grande quota de co-autoria na TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário), sigla para o monstro, ora ligeiramente atenuado (em versão revista), que ainda persiste em pretender substituir a gramática tradicional, para desgraça dos alunos. A outra é Maria Helena Mira Mateus, à frente do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), instituto universitário incumbido pelo Governo de produzir um "acordês oficial" em constante reformulação.
Estes "feudos" envolvem poder, envolvem empregos, envolvem subsídios e... envolvem fazer concessões. Inês Duarte pugna pela TLEBS, mas abomina o "acordo ortográfico". Maria Helena Mira Mateus produz o "acordês oficial" deste reino sem rei nem roque, mas abomina a TLEBS. A solução para as objecções de ambas foi simples: um pacto de não-agressão. Assim, no lodo, florescem ambas as monstruosidades e "atola-se" a aprendizagem e o ensino do Português. «Tu não te opões ao 'acordo', eu não me oponho à TLEBS...», e vice-versa. cRato sabe bem disto, cuja lógica matemática é linear. Não se trata de um matemático ultrapassado por duas linguistas, não, é ele o ministro. Apenas se demite, demite-se do seu dever, mas não sai de cena.
cRato sabe igualmente que o Ministério da Educação e a aprendizagem do Português nas escolas estão reféns da multimilionária negociata dos livros escolares, cujo monopólio pertence a dois grandes grupos editoriais (apesar da multiplicidade de chancelas sob as quais os manuais são dados à estampa): o Grupo Porto Editora e o Grupo Leya. Trata-se de gastos avultados e inadmissíveis que as famílias são coagidas a fazer. Se estas não puderem, há sempre o dinheiro dos contribuintes, através da Acção Social Escolar. Os interesses instalados é que não podem ser incomodados. cRato não perturba este saque anual, não institui o livro único por concurso público, demite-se quanto a isto também, mas não arreda pé.
Quem ouviu o actual Presidente da República fazer um discurso inolvidável sobre produtos "láteos" patrocinado pela Nestlé, quem soube da proposta da actual presidente da Assembleia da República de que este órgão de soberania arranjasse patrocinadores para as comemorações oficiais do 25 de Abril, em 2014, não poderá de forma alguma abismar-se ao ver (como eu já vi) uma embalagem de Chocapic numa roda-dos-alimentos afixada numa escola primária algures em Portugal.
Em 2014, cRato resolveu privatizar o Iave (Instituto de Avaliação Educativa), ou seja, dar autonomia administrativa a este organismo, que, por sua vez, diligenciou a obtenção de patrocínios para o "PET" (Preliminary English Test), um exame obrigatório no 9.º ano de escolaridade, após uns anos de estudo obrigatório de uma língua estrangeira específica pelas crianças portuguesas (enquanto a língua nacional é delapidada activamente). Onde pára a soberania?
Desconfio que, na óptica destes patrocinadores e da "tutela" que subsidiam, "pets" (animais de companhia) são as crianças deste país de gente passiva, são os futuros eleitores, já potencialmente amestráveis a existir num vácuo cultural de negação de si mesmos sob os auspícios de qualquer idioma franco que esteja "em alta" nos mercados globais.
Os patrocinadores do "PET" são a Universidade de Cambridge, o banco BPI, duas empresas de software (a Connexall e a NovaBase – "like life" –, portuguesíssima da Silva) e, claro, a Porto Editora. Esta está em todas, faz mesmo questão.
A globalização iniciada por Vasco da Gama foi a do encontro de culturas, não foi esta com que nos deparamos, a da massificação, a da fast-food. Em Agosto passado, tivemos a Porto Editora em megapromoção nos individuais de papel dos tabuleiros, nos McDonald's: poupe dinheiro, faça já a encomenda dos livros escolares dos seus filhos através da Wook (empresa do grupo Porto Editora) e tenha grandes descontos! Eis o local escolhido pela empresa que mais lucra com a educação dos nossos filhos, nesta cultura do descartável, do consumismo, do facilitismo... Nenhum local poderia ser mais adequado, de facto.
Nós, pais, sabemos que todas as tabelas dos manuais escolares adoptados para cada ano de escolaridade, em cada ano lectivo, afixadas em cada escola, têm em comum um importante "pormaior": o asterisco que remete para a recomendação de adquirir o manual apenas após confirmação da necessidade deste pelo professor da disciplina. Com promoções destas, a Porto Editora pretende retirar aos professores uma liberdade que ainda têm: a de não adoptar nenhum manual, a de utilizarem os seus próprios materiais para cumprir os programas que lhes são impostos.
Não nos espantaremos quando tivermos governantes fazendo conferências de imprensa em cenários revestidos com logótipos, como sucede no futebol. Falta pouco. Parece que não há "dignidade do Estado" (?) capaz de se sobrepor à força do dinheiro.
O Iave, em comunicado recente, veio insurgir-se contra quem afirmou poder o uso do português costumeiro pelos alunos implicar um desconto de quatro valores (em 20) nos próximos exames nacionais de 12.º ano, dizendo que se trata de uma improbabilidade. Ora, se se tratasse de uma impossibilidade, o Iave afirmá-lo-ia. Não o fazendo, paradoxalmente, vem confirmar as alegações que pretendia contestar, mas já se sabe da incompetência científica que por lá grassa. A colecção de erros crassos da PACC (Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades) de Física, por exemplo, veio demonstrá-la à exaustão, se dúvidas ainda houvesse.
Entretanto, saúda-se a novíssima Associação Nacional de Professores de Português (Anproport). Finalmente há, assim, uma alternativa credível à famigerada APP (Associação de Professores de Português) da inefável Dona Edviges das "ações de formatação em acordês", segundo a qual os professores não serão pagos para pensar, mas sim para acatar acriticamente as ordens da tutela, tutela essa que subsidia as "ações de formatação" e convoca a Dona Edviges para a "informar" sobre o que os professores de Português... não pensam.
A APP não divulga o número de associados, o que não se estranha, poderia alguém aferir da sua (não) representatividade. Com a recém-criada associação, certamente essa representatividade agora existirá, ouvir-se-ão vozes legítimas e extra-sindicais na defesa do ensino e da aprendizagem da Língua Portuguesa. Há luz ao fundo do túnel, os professores não se demitem.
Fora de brincadeiras tragicómicas muito sérias e sentidas, como as do título deste artigo, e a despeito do que dizem por aí, não há nem nunca houve "consoantes mudas", porque as consoantes pertencem à escrita, não à fala. Todas as consoantes se lêem, mas nem todas se dizem ou, se se dizem, dizem-se de tal forma que não se ouvem ou mal se ouvem. No máximo, seriam portanto "consoantes surdas" cujo lugar visual numa língua de matriz europeia, antiga, logo supostamente civilizada, não pode estar em causa.
A única surdez, aqui, é a do poder político perante o clamor do senso comum. A única mudez, aqui, é a que resulta da inexistência de verdadeira representação popular nesta pseudodemocracia partidocrática perante a qual a própria consciência individual dos actores políticos, seja no Governo, seja na Assembleia da República, de pouco ou nada parece valer-nos.
Aquando da carta aberta que lhe dirigi, fez agora três anos, tive ocasião de falar com cRato em privado. Não digo o que me disse, nem o que lhe respondi. Venho pública e repetidamente chamar-lhe cRato e, para melhor compreensão, três anos volvidos, acrescento no inglês mais português e imperativo de que sou capaz: "Prove me wrong!"
Médica, escritora e activista cívica