Conversão da Igreja ao serviço da transfiguração do mundo
Estamos no Domingo das Transfigurações. Celebramos o 1º aniversário da eleição do Papa Francisco, que já começou a transfigurar o Vaticano.
Tanto no sentido moral como religioso, tentar é induzir ao mal ou pôr alguém à prova. É neste último sentido que se fala das tentações diabólicas que assaltaram Jesus, durante o seu retiro no Deserto. Foi solicitado a assumir, de forma milagrosa e espectacular, o poder económico, político e religioso de um país ocupado pelo império romano, provando assim, a sua divindade messiânica. Essas propostas já foram evocadas na Eucaristia do passado domingo. As suas versões são diferentes em cada um dos Evangelhos sinópticos, mas coincidentes no essencial (Mc 1, 12-13; Lc 4,1-13;Mt 4,1-11). Para alguns autores do Novo Testamento (NT), as tentativas para fazer de Jesus o líder de uma insurreição nacionalista nunca o abandonaram, tendo encontrado cúmplices activos entre os apóstolos mais chegados. Jesus chegou a considerar Pedro como um diabo.
Estamos perante textos de uma cultura semita de há mais de 2.000 anos, com referências ao Antigo Testamento (AT) e continuamente reinterpretados na história das Igrejas. Exigem, por isso, que se volte a perguntar: as tentações de dominação económica, política e religiosa terão, ainda hoje, expressões significativas no mundo contemporâneo? Poderá a Igreja assumir as recusas radicais de Cristo ou terá de as corrigir, para poder voltar a sonhar com uma Cristandade poderosa no futuro?
F. Dostoiévsky (1821-1881), no romance, Os Irmãos Karamazov, com A Lenda do Grande Inquisidor, retomou, de modo impressionante, a centralidade desse tema de que só posso transcrever um breve trecho: “Se fosse possível imaginar, só a título de exemplo, que estas três perguntas tentadoras tivessem desaparecido das Escrituras e que fosse preciso reconstituí-las, reinventá-las, imaginá-las de novo, para as reintegrar nas Escrituras, se fosse preciso, para isso, reunir todos os sábios da terra – os reis, os cientistas, os filósofos, os poetas – e dizer-lhes: inventai, imaginai três perguntas que correspondam não só à grandeza do acontecimento, mas exprimam, além disso, em três palavras, em três frases humanas, toda a história do mundo e da humanidade, pensas que toda a sabedoria da terra teria podido inventar qualquer coisa que igualasse em profundidade e em força estas três perguntas que Te foram apresentadas no deserto, pelo espírito poderoso e inteligente?
Bastam essas perguntas, basta o prodígio que elas representavam, para se compreender que não se tratava duma inteligência humana, transitória, mas duma inteligência eterna e absoluta. Porque nestas três perguntas estava condensada e predita toda a história ulterior da humanidade. Elas resumiam, também em três imagens, todas as insolúveis contradições históricas da natureza humana. Isto podia não ser tão evidente, então, porque se desconhecia o futuro; mas agora, quinze séculos mais tarde, vemos que tudo o que foi adivinhado e predito nestas três frases se realizou a tal ponto que nada mais se lhe poderá acrescentar ou tirar”.
2. Não interessa muito saber se, do ponto de vista histórico, tudo se passou como vem contado nos Evangelhos. No campo literário, o mais simbólico, o mais poético é também o mais real. O que importa, em textos desta natureza, é o seu processo de significação. A sua interpretação em contexto litúrgico depende da seguinte pergunta: em que medida ajudam a interpretar a nossa experiência actual e, por ricochete, como é que a situação actual ajuda a redescobrir a fecundidade de textos exemplares, do ponto de vista humano e cristão?
Faço este apontamento não só por causa dessa questão, mas também pelas interrogações suscitadas pela leitura das passagens do livro do Genesis (c.2-3) e de S. Paulo (Rm 5), na mesma celebração. Continuam a alimentar a crença no pecado original, no qual todos os seres humanos teriam sido concebidos e que Jesus Cristo teria vindo redimir. Apesar de todo o trabalho exegético e teológico realizado, tudo isso que parece absurdo, ainda funciona como um arquétipo. Será porque nos continua a servir de desculpa pelo mundo tremendo em que nascemos e para o qual não se vê, ou não se quer ver, remédio?
3. Estamos no Domingo das Transfigurações. Celebramos o 1º aniversário da eleição do Papa Francisco, que já começou a transfigurar o Vaticano ao serviço da transfiguração da Igreja e a transfigurar o olhar de todos sobre a sociedade: ver o mundo a partir das periferias.
70 personalidades assinaram um manifesto sobre a reestruturação da dívida. A dívida é cada vez maior. Seja qual for a opinião acerca deste gesto, o que parece claro é que nunca iremos ter possibilidades de a pagar. Nestas crónicas antecipámos uma transfiguração quaresmal. O perdão das dívidas é um assunto bem conhecido do AT e NT. É melhor não os esquecer nesta Quaresma, que deve ser transfiguradora. A Alemanha não está arrependida de lhe terem perdoado uma dívida imensa. Desse perdão dependeu o seu milagre económico.
Os deputados, todos os deputados, não se esqueceram das suas condições de vida. Quando acordarem para a situação de vida da maioria dos seus eleitores, talvez descubram que muitos deles já morreram e outros imigraram.