Co-adopção: tornar mais curto o mundo
O que esta proposta de referendo faz é negar a quem ama de forma diferente da maioria uma habitação com direito a ter direitos.
Nesse meu poema, tentei falar “das formas de amar todas diversas / mas feitas de pequenos sons de espanto, / se o justo e o humano aí se abraçam”, quis dizer das múltiplas maneiras que há de amar e de se estar no mundo, desde que a essas formas presida a condição humana da justiça, que implica o respeito e o cuidado.
Vem isto a propósito do projecto-lei aprovado no Parlamento, em Maio de 2013, sobre a co-adopção de crianças por casais do mesmo sexo, e do referendo proposto agora pela JSD e aprovado por maioria. Pergunto: a quanto mais conservadorismo teremos nós que assistir; a quanta mais indignidade e crueldade? Sem ser em verso, era também de justiça e de cuidado que aludia o Instituto de Apoio à Criança, ao referir-se a esse projecto-lei de Maio passado. Tal projecto, dizia o IAC, “veio solucionar e dar resposta a casos de crianças que, por terem apenas uma menção relativa à sua paternidade ou maternidade, ficaram, desta forma, com a sua situação jurídica mais segura e protegida”. Não falamos de números, mas de crianças concretas que, caso o referendo avance e a lei não passe, ficam desprovidas do direito de protecção jurídica e emocional estável, se falhar uma das pessoas que compõem o seu agregado de afectos e cuidados, de educação e de formação; falamos ainda de crianças que se encontram sem famílias e em instituições; e falamos de pessoas que estão dispostas, enquanto casal, a amá-las e a protegê-las, a educá-las e a mostrar-lhes que o mundo pode ser mais belo e mais completo, mesmo que incompleto de imperfeições, se a todos e todas for dado lugar. Falamos, pois, de decência, de justiça, de direitos. E de amor.
Ora o que esta proposta de referendo faz é hierarquizar o amor, o mesmo que é dizer os amores, ou as formas de amar, colocando aqueles que não se enquadram na moldura dominante numa espécie de quarto dos fundos, escuro, objecto de vergonha, abjecto, afinal. O que esta proposta de referendo faz é negar a quem ama de forma diferente da maioria uma habitação com direito a ter direitos.
O grupo que agora propôs no Parlamento este referendo é um grupo que se diz de juventude, que se chama Juventude Social Democrata. Qual a importância das palavras e das designações? Sabemos que, infelizmente e cada vez mais: nenhuma. E sabemos todos também como as palavras “social” e “democracia” têm vindo a ser vilipendiadas e estão gastas e em desajuste daqueles e daquilo que designam. Seria, pois, retórico perguntar: onde está a indignação destes jovens quanto à multidão de crianças que em Portugal passa fome ou entra sem pequeno-almoço nas escolas? Talvez mais útil seria interrogarmo-nos sobre a razão pela qual os dois grandes referendos neste país foram sobre a interrupção voluntária da gravidez e agora sobre a co-adopção por casais homossexuais. A economia arredada do social está já controlada, e de forma eficaz, por este Governo. Não querendo misturar as coisas, diria que ambas as questões que o PSD considerou fracturantes na sociedade e para as quais reivindicou referendos têm a ver com o corpo e com uma única coisa: o controle daquilo que nos é mais intrínseco e privado, que é a sexualidade e a livre expressão dos afectos. Controlada que está a distribuição da riqueza, faltava agora controlar este último reduto.
Quanta mais indignidade?, pergunto. Poderia também perguntar: “Quanto mais embuste?” Embuste, porque, pensando do ponto de vista de coerência interna de um Governo cuja única linguagem que sabe usar é a do dinheiro, não deixa de ser curioso que o PSD encarregue a JSD de, nesta altura de crise, propor o gasto de milhões de euros num referendo que diz respeito às minorias sexuais. Embuste, portanto, porque tudo parece montado para desviar as atenções dos constantes atropelos noutras áreas, como os cortes nos salários ou nas reformas, ou os vergonhosos negócios, abençoados pelos compadrios entre o Estado e o sector privado. Essas são as “infinitas maneiras de prevalecer” que este Governo tem demonstrado, aniquilando, embora não “mansamente” nem “delicadamente”, mas por também “ínvios caminhos”. Contudo, não perguntaria nunca “quanta mais incompetência?”, porque, como já disse em vários sítios, eles sabem muito bem o que estão a fazer e chamar-lhes incompetentes é desresponsabilizá-los de gestos pensados, como este, e de acções concertadas e com fitos bem claros.
Naquele meu poema, que foi escrito em 1998, quis oferecer à minha filha antídotos possíveis, feitos de amor e de poesia contra algo que eu receava: que, “num futuro mais perto”, lhe viessem dizer que “quem assim habita os espaços das vidas / tem olhos de gigante ou chifres monstruosos”. Não sabia que, quase vinte anos depois, veria no meu país a gente que o governa a defender isto mesmo. É nosso o dever da denúncia e a revolta. Deles é a indignidade. E a vergonha de querer tornar mais curto o mundo.
Poeta e professora universitária