Bom Natal
Talvez essa civilidade dos portugueses deva alguma coisa à cultura cristã, que nos tem impregnado ao longo dos séculos.
Refiro-me, por exemplo, a três eventos recentes de aparente sinal contrário: o veto do Tribunal Constitucional a uma medida governamental; o acordo entre a maioria e o partido líder da oposição para reduzir os impostos; e a forma incrivelmente ordeira e pacífica com que as escolas e as forças de segurança lidaram com a grosseira tentativa de boicote a um exame para professores do secundário.
O veto do Tribunal Constitucional é uma prova irrefutável de que o nosso sistema de separação de poderes e de freios e contrapesos está a funcionar regularmente. Não se trata de saber se concordamos ou não com a decisão do Tribunal. Trata-se "apenas" de observar que o sistema funciona, isto é, que não fala a uma só voz.
Mas, não deveria o Estado falar a uma só voz? Não será um escândalo que o Governo insista em legislar contra a vontade do Tribunal? Ou, de um ponto de vista oposto, não será um escândalo que o Tribunal insista em bloquear a vontade da maioria?
Essas perguntas são compreensíveis, mas receio que decorram de visões monistas de sinal contrário. Numa democracia constitucional pluralista, não queremos falar a uma só voz. Gostamos de ter várias vozes, expressas ordeiramente através de instituições que foram pensadas – ou melhor, foram experimentadas e começaram a ser pensadas -- para limitar o poder umas das outras.
Por outras palavras, as nossas democracias são herdeiras do espirito de compromisso e moderação de Edmund Burke e das revoluções relutantes -- a inglesa de 1688 e americana de 1776 – não da vontade geral de Rousseau e da ardente revolução francesa de 1789. Isto significa que gostamos da separação e equilíbrio de poderes, que se moderam uns aos outros, não de alegadas vontades gerais – que reclamam vontades e verdades únicas.
Este espírito de compromisso e moderação foi eloquentemente manifestado pelo recente acordo entre o Partido Socialista e os partidos da maioria para reduzir o imposto sobre as empresas. Partidos rivais, que permanecem distintos e rivais, podem e devem acordar em medidas específicas. Por vezes, podem mesmo concordar em coligar-se por períodos limitados e em torno de medidas limitadas. Acabou de acontecer na Alemanha, porque não pode vir a acontecer entre nós?
Não pode seguramente acontecer entre nós, segundo a visão do mundo que presidiu à grosseira tentativa de boicote ao exame dos professores, na passada quarta-feira. É importante perceber porquê.
Os professores que discordavam da prova tinham todo o direito de fazer greve e manifestar publicamente a sua discordância. Mas não foi isso que fizeram. Tentaram impedir os seus colegas de aceder às escolas e às salas onde decorria o exame. Tentaram boicotar as provas quando elas já estavam a decorrer. Foi uma lamentável tentativa de regressar ao PREC, quando a ditadura da rua tentou destruir o normal funcionamento das instituições democráticas.
O PREC fracassou em 1975 pela mesma razão que a tentativa de boicote falhou na semana passada: o bom senso do povo português, como costumava dizer o Dr. Mário Soares. Foi verdadeiramente impressionante observar como as forças de segurança e os professores que queriam fazer exame enfrentaram com exemplar cortesia a grosseira obstrução promovida pela Fenprof. A foto de capa do Público da passada quinta-feira diz tudo o que há a dizer: um oficial de segurança protege cortesmente um professor que quer entrar numa escola, cujos portões estão autoritariamente obstruídos por manifestantes.
Esta foto deve ser destacada como símbolo do Portugal democrático, cortês e moderado – que enfrenta o fanatismo com civismo e moderação. E talvez não seja excessivo dizer que foi essa atitude de civismo e moderação que salvou a democracia portuguesa da ditadura comunista em 1974-75, após 48 anos de ditadura salazarista.
Talvez essa civilidade dos portugueses deva alguma coisa à cultura cristã, que nos tem impregnado ao longo dos séculos. É uma cultura intrigante, fundada numa misteriosa tensão entre misericórdia e exigência. Essa atitude foi descrita pela chamada "Carta a Diogneto", do século II, de autor desconhecido. Diz essa carta:
"(Os cristãos) habitam pátrias próprias, mas como peregrinos; participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos".
Bom Natal.