As Comissões de Protecção

A comunicação social tem trazido a debate o papel das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), a propósito de situações extremas ocorridas nas últimas semanas e que implicaram morte ou maus tratos graves a crianças.

Como acontece com frequência em Portugal, a discussão surgiu carregada de sensacionalismo e de falta de conhecimento. Importa salientar sobretudo o que foi dito de errado sobre as CPCJ, que alguns continuam a designar por “Comissões de Menores”, um termo há muito posto de parte, pelo que implica de secundarização dos mais novos.

As CPCJ são instituições oficiais não judiciárias com autonomia funcional e composição claramente pluridisciplinar e pluri-institucional, às quais cabe deliberar com “imparcialidade e independência”, segundo a lei. Ouvi dizer na televisão que as CPCJ poderiam “retirar as crianças aos pais”, o que não teriam feito nalguns casos em análise. Convém esclarecer que a intervenção das CPCJ depende do consentimento expresso dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto (artigo 9.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo). Assim a discussão em redor das CPCJ terem ou não “retirado” as crianças em causa carece de qualquer sentido.

Compreende-se que assim seja: o consentimento que a lei exige para a intervenção assenta na titularidade das responsabilidades parentais, com o objectivo de envolver ambos os progenitores numa actuação que pode conduzir a restrições dos seus direitos. Como escrevem o juízes Helena Bolieiro e Paulo Guerra, não podemos esquecer que o artigo 36.º da nossa Constituição “determina que as decisões que constituam restrições aos poderes-deveres fundamentais dos pais relativamente aos filhos são da competência exclusiva dos tribunais, salvo se aqueles consentirem na intervenção de uma entidade não judicial e sempre nas situações e dentro dos condicionalismos previstos na lei (…) este sentido é, aliás, o mais consentâneo com o princípio da responsabilidade parental que deve orientar a intervenção de protecção e que, ao se referir aos deveres dos progenitores, tem certamente por base a titularidade das responsabilidades parentais e não apenas o seu exercício”.

No meu recente livro O Tribunal É o Réu, procurei transmitir uma visão positiva do trabalho das CPCJ e esclareci as vicissitudes e constrangimentos da sua actuação, num sistema judiciário que comparei ao castelo de Franz Kafka. Algumas vozes, de modo nem sempre frontal, propõem a sua extinção, para que a protecção das crianças passasse a ser da exclusiva competência dos tribunais ou de instituições privadas de solidariedade social (IPSS) especialmente contratadas para o efeito. Se esta tese vingar, não tenho dúvida de que tudo piorará: no primeiro caso, o habitual atraso da nossa justiça e a falta de assessoria técnica dos tribunais conduzirá a discussões legais intermináveis e adiará a ainda possível correcção da actuação de alguns pais; no caso das IPSS, a sociedade perderá grande do seu poder de apoio junto das crianças em risco e o Estado verá cerceado o seu poder regulador e interventor.

Acima de tudo, convém que se definam políticas concretas de protecção à criança e à família, única forma de podermos melhorar a resposta às crianças em perigo. “O sistema falhou”, ouvi dizer na televisão: mas há algum sistema perfeito? Não será altura para melhorarmos a vida das crianças em vez de só discutir a sua protecção?

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