Ali ensinam aos pediatras que nódoas negras em sítios estranhos podem não ser leucemia

O núcleo de apoio às crianças e jovens em risco do Hospital Amadora-Sintra é o que mais sinaliza casos de maus-tratos infantis no país. Para detectar os que aparecem escondidos, os médicos têm que tentar sair dos seus mundos e pensar no imponderável. Ficam na desconfortável posição de descortinar, em feridas gravadas na pele com formas geométricas, abusos de pais e mães

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Num dos casos relatados aos pediatras, o inchaço numa perna que a mãe da criança dizia ser uma picada de abelha era, afinal, uma fractura Nuno Ferreira Santos

Quatro meses depois a mesma criança voltou às urgências. Só que agora vinha ao colo de um bombeiro. Tinha o corpo preenchido de negro, eram visíveis as marcas das cordas com que havia sido amarrada a uma cadeira, tinha pequeninas feridas dos palitos que lhe eram espetados na pele. Durante o dia a mãe deixava-a com o namorado que, como estava desempregado, lhe tomava conta dela juntamente com o seu filho. Mas a ele não batia. A própria mãe também era vítima de violência e não conseguia defender a filha. Quando viu a menina, o pediatra que a tinha observado aquela primeira vez ficou como nunca o tinha visto a colega Helena Almeida.“Perturbado.”

“Sentimo-nos horríveis quando deixamos passar um caso destes”, diz Helena Almeida, presidente do núcleo de apoio às crianças e jovens em risco do Hospital Amadora-Sintra. Mesmo quando aparentemente se fez tudo ao nosso alcance. Há casos, como este, que se tornaram bandeira no núcleo, porque o ideal seria que viessem à memória de todos os médicos que trabalham nas urgências pediátricas sempre que vêem uma criança e pensam, como ensinaram à maioria nas faculdades de medicina, sobretudo às gerações mais velhas, a pensar em causas orgânicas - explica a pediatra Maria de Lurdes Torre, outras das médicas que integra o núcleo, e que faz parte de uma secção nova da Sociedade Portuguesa de Pediatria, chamada Medicina Social, por tratar de patologias com origem fora do organismo, na sociedade.

A queda de cabelo não era devida a uma doença auto-imune, os cabelos eram arrancados pelo namorado da mãe, e a perda de peso era porque a menina estava deprimida, recorda Helena Almeida. O caso desta criança, chamemos-lhe Carina, é hoje um dos que estão descritos num powerpoint para que os profissionais de saúde aprendam com ele. Todos os pediatras do Amadora-Sintra têm de fazer formação em maus tratos.

No último slide surge a face ferida de Carina. “A grande preocupação foi a alopécia...” E é como se a frase de Maria de Lurdes Torre ficasse pendurada no ar, porque se instala o silêncio na sala de formação. “O senhor foi preso”, diz a assistente social Patrícia Santos, preenchendo a incómoda ausência de ruído. “A menina está na escola, muito vivaça, está muito bem”, junta, como num convite à descompressão, a psicóloga Filipa Fonseca, também deste núcleo que junta 11 profissionais de várias áreas. Ficou a viver com a avó.

“A esta miúda safámo-la, é a recompensa. Não tirámos tudo o que está para trás, mas a partir de agora pode ter uma vida melhor”, observa Helena Almeida. E é como se o mantra desta formação sobre maus tratos infantis fosse uma frase que Maria de Lurdes Torre diz à margem da sessão: “Não era evidente, eu fiz o melhor que pude, isto não era linear. Acontece a todas as pessoas”. É assim que conseguem seguir em frente. Depois, tentam ir à raiz dos erros nestes casos “mascarados”.

O que os membros do núcleo procuram fazer durante as quatro manhãs de formação por ano é ensinar aquela plateia a contrariar vícios de raciocínio. Helena Almeida chama-lhe “uma guerra de aprendizagem”. Porque é que que um hematoma num sítio fora do normal para uma queda de criança há-de primeiro ser investigado como leucemia?, exemplifica Maria de Lurdes Torre. Porque é que se pensa numa doença rara antes de se pensar em maus tratos?

E porque é que o facto de o pai estar muito nervoso durante a consulta não há-de constar na ficha de observação clínica da criança? Porque os médicos são ensinados a deixarem a subjectividade de lado, a serem o mais científicos possível, e isso significa desvalorizar o facto de o progenitor, que trouxe a criança “por ter caído das escadas”, não parar de bater com o pé no chão durante a consulta. O processo clínico não é visto como sítio para impressões, sentimentos, para o não dito. Nos maus tratos é essa informação, “esses feelings”, como lhes chama, que podem fazer a diferença, elucida a médica, que é também chefe de serviço da urgência e dos cuidados intensivos pediátricos desta unidade dos arredores de Lisboa.

Lurdes Torre lembra-se do caso de um menino de dois anos e meio trazido às urgências por ter caído do sofá. Tinha ferimentos que condiziam com a queda e a idade certa para ser irrequieto. Ia observar as feridas da queda, mas depois pensou naquela mãe, com um comportamento que lhe pareceu desadequado perante uma situação que não era grave, “chorava muito”, e decidiu observá-lo sem a presença dos pais. Nem sequer se tinha aproximado dos genitais quando o menino disse “na pilinha não, o pai aperta a pilinha”. Estava há poucas semanas em casa dos novos pais, adoptivos, e que, por isso, tinham passado por todos os crivos e mais alguns para serem poderem cuidar daquele menino tão desejado. Para a médica, este caso também serve de lembrete de como até os pais mais insuspeitos podem ser agressores. Biológicos e adoptivos, pobres e ricos.

Em 2013 estavam em 20% os casos de maus-tratos infantis detectados no hospital que já tinham passado pelas urgências pediátricas pelo menos uma vez, menos de metade do que sucedia até 2005. O objectivo é que cheguem a 10%.

Outro “caso paradigmático” é aquele a que a enfermeira Joana Romeiro chama “a história da abelha”. A menina chegou com a perna direita muito inchada porque, segundo a mãe, havia sido picada por uma abelha. Fez-se um raio X e tinha uma fractura.

Os slides seguintes mostram outras radiografias que seccionam o esqueleto da mesma criança: perna esquerda, uma fractura; braço direito duas, braço esquerdo uma fractura. Depois uma Tomografia Axial Computadorizada mostra um hematoma craniano. Cinco fracturas, seis meses de vida. Tinha passado 13 vezes pelas urgências. No powerpoint podem ler-se os motivos das visitas ao hospital, que incluem muitos dos clássicos destas idades: obstrução nasal, cólica de recém nascido, bronquiolite. Em torno do quarto mês a menina da picada veio por um traumatismo craniano, porque tinha sido deixada cair por uma irmã. A seguir veio por dermatite seborreica.

“O que é teríamos feito diferente? Onde errámos?”. Nenhum dos formandos responde. Talvez a suposta queda do colo da irmã, que pareceu verosímil ao médico que a atendeu, pudesse ter sido investigada, sugere Lurdes Torre. Descobriu-se então que a família era de risco: os pais tinham atraso cognitivo, o tio era toxicodependente, o avó alcoólico. A criança esteve 19 dias internada, foi retirada à família e colocada numa instituição de acolhimento.

Durante a formação Helena Almeida aconselha os profissionais de saúde a “saírem dos seus pés, do seu olhar”. É como se dissesse que é preciso que consigam sair de si mesmos, do mundo que lhes é familiar e onde os pais não agridem os filhos. Só assim poderão aceitar como plausíveis hipóteses que lhes surgem como impensáveis. Pedir análises para detectar infecções sexualmente transmissíveis numa bebé? Sim, se houver suspeitas de abuso, como já lhes aconteceu com um bebé que tinha clamídia, preconiza. “Os médicos fogem destes casos”, diz, porque consomem muito tempo numa urgência, é verdade, mas também porque “vão contra a nossa estrutura moral, os nossos princípios mais básicos. Preferimos pensar que não existem.”

Os profissionais de saúde que hoje ali estão sentados saberão todos que as queimaduras têm um centro necrótico, como surge num slide. Mas será que estão preparados para descortinar formas geométricas em feridas gravadas na pele de crianças? Uma meia-lua pode ser a marca de uma frigideira, um rectângulo incompleto pode revelar tareia de cinto, vários pontinhos muito juntos, os pelos duros de uma escova de cabelos. “As feridas acidentais não têm padrões, não sugerem figuras”, termina Helena Almeida.

A presidente do núcleo aconselha-os a não terem medo "de suspeitar a mais", mesmo que isso implique muitos recursos. "Não deixem é passar casos”. Têm que colher indícios e depois deixar a justiça fazer o seu trabalho.

O caso seguinte é o de uma adolescente de 12 anos que diz ter sido abusada sexualmente pelo namorado de 23, que conheceu online. A família corrobora a história. A Judiciária intervém e nada descobre sobre o pretenso agressor, que nunca existiu. Veio 17 vezes às urgências, passou dezenas de horas em consultas médicas e exames. No fim, descobriu-se que tinha problemas psiquiátricos, com antecedentes de doença mental na família. “Era tudo confabulação”, recorda outro médico do serviço.

A lição a tirar de casos que passaram desapercebidos e dos que eram mais do que pareciam é que mais vale pecar por excesso, defende a presidente do núcleo. Quem pensa nesta afirmação como uma aproximação a uma realidade que se costuma associar aos Estados Unidos, em que se tornaram mediáticos casos de crianças tirados injustamente às famílias, pode afastar esse cenário, comenta Helena Almeida. “Estamos muito longe disso”. Prova disso, sublinha, é que mais de metade dos casos de maus-tratos, excluídos os casos de negligência, são sinalizados pelos hospitais. Há 44 núcleos hospitalares idênticos no país, este é o que mais sinaliza – no ano passado deram a conhecer 234 casos, 60% são maus tratos físicos, 35% são de abuso sexual. A idade média é de 9 anos.

“Não deviam ser os hospitais os grandes declarantes”, nota, porque isso significa que “só são identificados os maus tratos quando é grave, quando há abuso sexual com penetração, quando há fracturas. Estamos a apanhar as situações claramente visíveis, a ponta do icebergue”. Nos países é que a cultura da detecção dos maus-tratos está mais desenvolvida, casos da Inglaterra e da Holanda, é mais nas escolas que se detecta”.

O principal agressor nos casos de maus tratos é o pai (32%), depois a mãe (20,8%), seguida dos conhecidos que não fazem parte da família (12%). Pessoas próximas da criança, portanto. Mas se os profissionais de saúde estiverem à espera que sejam os miúdos a tornar evidente que são vítimas, com comportamentos hostis contra os seus abusadores, precisam de perceber que isso nem sempre é verdade, explica Helena Almeida. “As crianças estão preparadas para gostar dos adultos que tomam conta delas. A mãe gosta de mim e bate-me, então bater é sinal de afecto.”

Lembra-se que havia uma menina que gostava muito da ama onde a mãe a deixava todos os dias. Por isso a mãe defendia-a, não acreditava que lhe pudesse fazer mal, se a filha se mostrava tão contente quando lá ficava. Uma criança de quatro anos chegou-lhes às urgências com uma fractura do baço, outra, de meses, com uma perna partida, outra com uma fractura do braço. O núcleo conseguiu montar o puzzle e encontrar o fio condutor: tinham em comum a mesma ama, aquela de quem a menina tanto gostava.

Às vezes querem saber o que aconteceu a seguir, aos meninos, mas também ao agressor. É difícil acompanhar as histórias até ao fim, estão sempre a ser interrompidos por “outros casos a chegar”, diz. No caso dos três meninos souberam na imprensa: “Ama detida por agressões a bebés”. “Não é prémio, é consolação”, diz Helena Almeida.

Exemplos de possíveis sinais de alerta

Fracturas
Em crianças com menos de 2 meses, entre 80% das fracturas são causadas por maus tratos;

Abaixo dos 3 anos a probabilidade desce para 25%

Uma criança que cai dificilmente apresenta fracturas nas costelas

Queimaduras
Cada objecto ou acção deixa uma marca específica que os médicos aprendem a reconhecer. “As feridas acidentais não têm padrões, não sugerem figuras geométricas”

Abuso sexual
Em crianças mais novas:
Temores nocturnos
Obediência exagera ao adultos e preocupação em agradar
Dificuldade de relacionamento com outras crianças
Interesse e conhecimento desadequado sobre questões sexuais

Nos jovens:
Dormir com roupa vestida
Recusa em tomar banho
Auto-mutilação

Fonte: Núcleo Hospitalar de Apoio às Crianças e Jovens em Risco do Hospital Fernando da Fonseca

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