A morte dos jornais
Eu acabei o curso de Ciências de Comunicação em 1998 e nesse ano comecei a trabalhar na secção de cultura do Diário de Notícias. O meu editor chamava-se Eurico de Barros e o editor adjunto chamava-se Nuno Galopim. São pessoas que dispensam apresentações no meio jornalístico português. Os dois foram despedidos do DN no final da semana passada, no decorrer de um processo de despedimento colectivo que afastará dos quadros da Controlinveste mais 158 pessoas. Decidi trazer os seus nomes para aqui porque é importante dar cara aos números e para que se perceba que ir para a rua deixou há muito de ser sintoma de incompetência ou de falta de empenho. Já não há forma, para utilizar a linguagem política, de “cortar na gordura”. Tudo é carne.
Quando eu saí do DN em 2007, o Eurico teria perto de duas centenas de folgas em atraso. Não sei quantas terá hoje. Nós gozávamos com ele por causa disso. A sua vida era aquele jornal, folgava em média um dia por semana. E não era só suor – muito pouca gente nesta terra escreve tão bem, com tanta elegância, tanta ironia e tanto sentido de humor quanto ele. Quando trabalhar muito e bem já não chega para mantermos o emprego, pela simples razão de que, ao fim de 30 anos de carreira, ter um salário de dois mil euros é considerado uma extravagância, então o nosso trabalho serve para quê?
Colocada a pergunta, este meu texto deveria levar-me a vociferar contra a injustiça da situação, culpando as sucessivas direcções e administrações pelo estado a que o DN chegou. O grupo Controlinveste, há menos de cinco anos, anunciou o despedimento de 122 pessoas. Agora, anuncia que vai despedir 160. Quantas irão ser em 2019? O problema desta indignação, contudo, é ela não dar resposta ao facto de em dez anos os jornais de referência terem perdido 75% da sua circulação e outro tanto em receitas de publicidade. Ninguém sabe como é que se fazem bons jornais sem jornalistas de qualidade. Mas também ninguém sabe como se fazem bons jornais com os actuais níveis de prejuízos financeiros.
Aliás, se não fosse o dinheiro angolano, cuja lógica de investimento é a do poder e não a da rentabilidade económica, aquilo a que se estaria a assistir no DN não era a um despedimento colectivo, mas ao encerramento do jornal. A escolha não é, pois, entre a dor e a ausência de dor. A escolha, como diria Faulkner, é entre a dor e o nada. E essa é a pior escolha de todas. Os jornalistas sempre foram ensinados que era o seu esforço, as suas notícias, as suas manchetes que atraíam os leitores e sustentavam os títulos. O que fazer quando isso deixou de chegar?
Durante o período de fascínio digital, ainda se tentou inventar o jornalista multitasking, com uma câmara na cabeça, a escrever com a mão direita para o papel e com a esquerda para o online. Mas nada é mais parolo em 2014 do que o deslumbre tecnológico. As opções que restam são apenas duas. Ou se olha para um jornal com espírito de mecenato, patrocinando jornais de referência da mesma forma que a Gulbenkian patrocina a música clássica, sem a expectativa que algum dia dali venha dinheiro; ou então começamos a rezar para que um génio da gestão revolucione o modelo de negócio dos jornais, seja através da mudança de política de remunerações, seja através de uma nova estratégia de exploração de marca que retire ao papel a exigência do lucro. Até lá, nada vai mudar, por mais textos comoventes que possamos escrever. Até lá, os jornalistas serão sempre carne para canhão.