A lógica do “interesse público”

Crentes nesses valores, prudentes, parlamentos e governos trataram de salvaguardar a discrição e respeito pela vida privada e íntima de que falava Eça. A força hereditária debilitou-se. Só com leis se acreditou preservar as virtudes que nos doaram os antepassados. Leis e leis firmes. Vigorosas. De natureza criminal. Criminalizou a devassa. A punir a violação do segredo de Justiça, do sigilo fiscal. Outros segredos. Somos terra de muitos segredos que ninguém respeita. Aí se detecta também a protecção da honra e integridade.

Do que está em segredo de Justiça, pode falar-se no café, no autocarro, ao telefone. Com os recatos impostos pela rainha da investigação criminal. As escutas telefónicas. Estamos todos sob escuta. Uma sorte de terreno baldio. Diz a ministra da Justiça.

A exclusiva excepção é a da comunicação social. Aí, sim, há violação do segredo. O “mensageiro” dá a todos o que cabe só a alguns.

A balbúrdia é tanta que se pretendeu pôr-lhe cobro. Alta instância judiciária ordenou uma auditoria à violação do segredo de Justiça. Para males grandes, grandes remédios. Veio a auditoria. Sucedeu há muito, muito tempo. A indisciplina floresce. O trabalho louvável de investigação, conclusões e propostas jaz no silêncio dos gabinetes. Aguarda vez de ser analisado, tratado, tornado útil à comunidade. Foi criado “um grupo de trabalho”. Não trabalha.

Irmãs de sangue e alimento do segredo de Justiça são as escutas telefónicas. Instrumento sub-reptício de investigação de tudo e de todos. A usar, dizem as leis, quando o crime é impossível, ou quase impossível, de ser investigado com e por outros meios. Usadas, mantidas e armazenadas a torto-e-a-direito. Adicione-se o sigilo fiscal. À disposição de milhares que revelam o seu conteúdo a outros tantos milhares.

Porque tudo se resguarda em segredo, os privilegiados, com avença nas sedes próprias, fazem disso negócio. Ao serviço do “interesse público”! Que também têm o privilégio de definir. De mão dada com os segredos de justiça e fiscal, informam-nos de tudo o que temos, devemos e precisamos saber sobre o vizinho. Vamos digerindo, meses a fio e em lume brando, a culpabilidade deste ou daquele. Conhecendo, sem pudor, aquela e esta faceta da sua vida privada. 

Humilhação, devassa, delação com vestes de “interesse público” não são umas boas, outras más. São o que são. Não se prescinde do comentário maldoso, da nota depreciativa, do juízo reprovador. Somos inteirados de que um ex-ministro, prendado com duas garrafas de vinho e tabaco, retribui com bilhetes de futebol. Outro não escreveu o livro que escreveu. Um magistrado disponibiliza o seu apoio a um visado. Dirigentes almoçam juntos, um terceiro paga a refeição. Merecem condenação comunitária na rua. A Justiça do Estado tem a mania dos códigos, regras, procedimentos. Dos direitos de defesa. Muitas vezes absolve. É ronceira.

Miguel Torga, na imensa sensibilidade de poeta, diz que “perdemos toda a densidade humana e ficamos espectrais e sem duração na leviana fugacidade de uma notícia”.

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