A independência da RTP e da comunicação social privada
É inaceitável que se fale tanto em assegurar a independência da comunicação social face ao poder político e se esqueça o poder económico.
De facto, já foi assim: antes do 25 de Abril, apesar de o Estado deter apenas um terço do seu capital social, a RTP era um instrumento do Governo, sobretudo no tempo de Marcelo Caetano, que a aproveitou mais do que o próprio Salazar. Todavia, esta submissão ao poder político, ainda que tenha tido outros exemplos em países do Sul da Europa, está longe de ser um problema na generalidade dos países europeus.
Regressando ao caso português: depois do fim da ditadura, durante a fase em que ainda detinha o monopólio da atividade televisiva ou mesmo até meados dos anos 90, a empresa continuou a favorecer claramente os sucessivos Governos. A instabilidade política refletiu-se na empresa: nos 25 anos seguintes ao 25 de abril, a empresa teria 22 conselhos de administração e, num só mês, em março de 1975, passaram pela RTP quatro diferentes presidentes! Por outro lado, até ao primeiro Governo Sócrates, cada vez que mudou a cor política do Governo, mudaria no espaço de três meses a administração, e, logo a seguir, o diretor de informação. Criou-se demasiadas vezes uma cadeia hierárquica de controle político entre o Governo e a direção de informação.
No entanto, nos últimos 20 anos, além do maior escrutínio a que a RTP foi sujeita quando deixou de ter o monopólio televisivo, foram sendo adotados diversos mecanismos que a distanciaram do poder político, tornando a sua informação e programação bem mais independentes e plurais. A criação de um conselho de opinião, que na RDP, em 1995, chegaria a ver-lhe atribuída competência para eleger dois dos três administradores, a inamovibilidade dos gestores, a existência de provedores dos espectadores e dos ouvintes, a fiscalização das auditoras externas e da ERC, que tem igualmente poderes para vetar a designação ou exoneração dos diretores de programas e de informação, o papel dos jornalistas da empresa, que foram criando um escudo face às tentativas de intromissão e o próprio controlo parlamentar, que inclui a possibilidade de audição pontual da administração da empresa e dos seus diretores de conteúdos, tornaram a independência da RTP bem superior à que existia antes do período iniciado nos anos 90. Mesmo considerando os recentes casos de Pedro Rosa Mendes, silenciado na RDP, ou do “Brutosgate”, que levaria ao afastamento de Nuno Santos.
É claro que a empresa continua a ser tutelada pelo Governo, que define a sua estratégia empresarial e as suas prioridades – obrigações de programação incluídas no contrato de concessão do serviço público, novos serviços, financiamento, entre outras. Aliás, este modelo governamentalizado não difere muito do da BBC ou de alguns países europeus, mas existem outras soluções na relação entre o poder político e o operador de serviço público: por exemplo, na Alemanha, o diretor-geral da empresa é escolhido por um conselho de opinião representativo da sociedade civil; em França, a entidade reguladora para o audiovisual escolhe o presidente da empresa; em Espanha, as Cortes elegem os gestores por 3/5 dos seus membros.
No entanto, e voltando ao caso português, é incontestável que a influência governamental ou partidária nas decisões editoriais tem vindo a ser crescentemente marginal. A questão da independência da RTP face ao poder político, que tanto marcou o início da regulação dos media em Portugal – recorde-se o papel e a atividade dos conselhos de informação (1977-1984) e do Conselho de Comunicação Social (1984-1990) –, tem hoje uma presença claramente secundária no conjunto das queixas apresentadas à ERC.
Importa, todavia, ter em consideração que a questão da independência dos operadores de televisão ou da generalidade dos órgãos de comunicação social não se reconduz apenas à controvertida relação entre a RTP e o poder político. A existência desde o início dos anos 90 de grupos de comunicação social com alguma dimensão e, no caso da televisão, de operadores comerciais em sinal aberto, ligados a dois desses grupos (Impresa e Media Capital), e mais recentemente de outros operadores que emitem apenas num regime de acesso não condicionado com assinatura (CMTV, entre outros), ou ainda de empresas que aspiram a uma presença na televisão em sinal aberto, impõe que a questão da independência seja dissecada tendo em conta outros parâmetros: por exemplo, o pluralismo interno dos operadores, que a lei da televisão impõe, a independência da sua linha editorial face aos interesses económicos da empresa e o efetivo reconhecimento dos direitos de participação dos jornalistas.
Esta tem sido uma matéria tabu, ausente das análises sobre o âmbito da independência dos operadores e dos grupos de comunicação social face aos poderes político e económico. Há de facto um manto de silêncio sobre a influência dos proprietários dos grupos de media na definição quotidiana dos conteúdos. Não se trata de impedir ou sequer reprovar que os proprietários de um órgão de comunicação, no momento da sua fundação, definam as grandes linhas do seu projeto jornalístico e dos conteúdos de programação, nomeadamente através do seu estatuto editorial e da escolha dos seus responsáveis. A questão é que os interesses específicos dos grupos económicos condicionam cada vez mais, bem para além desse momento fundacional, a liberdade editorial dos jornalistas, impondo-lhes opções que têm bem mais a ver com o jogo de influências em que as empresas se movem do que com meros critérios jornalísticos.
Neste contexto, é inaceitável que se fale tanto em assegurar a independência da comunicação social face ao poder político e se esqueça o poder económico. Pergunto: não tem sido evidente o facto de vários órgãos de comunicação social condicionarem a sua orientação editorial face aos Governos e a alguns governantes, nomeadamente da própria área dos media, em função dos interesses privados dos seus grupos empresariais? Dependendo os grupos de comunicação social das receitas comerciais, nomeadamente da publicidade, terão os jornalistas uma total liberdade para criticarem os seus principais anunciantes? Será tranquilizador saber que, ao lado de grupos de comunicação social que aspiram legitimamente a ter sucesso e lucros no setor, há outros que existem para ter proveitos e outras vantagens, não no setor da comunicação social, mas pela influência social, económica e política que querem conquistar através dele? Será aceitável que existam importantes empresas no setor de que não se conhecem os seus acionistas, situados em obscuros offshores, e que não aceitam colaborar, como a legislação impõe, com quem tem de assegurar a transparência da propriedade das empresas de comunicação social? Não será preocupante que tenda a diminuir o número de órgãos de comunicação social onde os jornalistas criem conselhos de redação, forma mais relevante de exercício do seu direito de participação?
Estes são apenas alguns exemplos…
Professor universitário