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Tinariwen: que ninguém lhes roube o trono de reis dos blues do deserto

Pop

Mestres e discípulos

Tinariwen e Tamikrest: os primeiros conquistaram o seu lugar não se deslocando um centímetro da sua música, os segundos, mais novos, foram à procura do mundo nas suas canções. Gonçalo Frota

Tinariwen

Tassili

Anti; distri. Popstock

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Tamikrest

Toumastin

Glitterhouse; distri. Popstock

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Pode parecer questão de somenos. Mas não é. Quando os Tinariwen passaram das cassetes de circulação local para os álbuns com alcance planetário, fizeram-no, naturalmente, integrados em catálogos de editoras especificamente talhadas para o comércio da world music. Aos poucos, a reputação da banda levou à colocação num universo mais abrangente e, hoje, "Tassili" chega-nos através da Anti, editora de Tom Waits, Tricky, Neko Case ou Wilco. Já os Tamikrest, espécie de filhos dos Tinariwen, assinaram directamente pela Glitterhouse, casa virada para as margens do alt-country via Walkabouts, 16 Horsepower ou Woven Hand. E isto quer dizer apenas uma coisa: para o mundo, os blues eléctricos do Mali tuaregue são hoje pertença da música dita alternativa ou indie. Já não são world music.

Facto que torna especialmente curiosa a edição quase simultânea de "Tassili" e "Toumastin". O movimento que encontramos nos Tinariwen e nos Tamikrest é exactamente oposto: enquanto os primeiros conquistaram o seu lugar não se deslocando um centímetro daquela que é a sua música - uma transposição para a electricidade dos temas da tradição musical do Mali, não circunscrita aos tuaregues -, os segundos, mais novos, partiram precisamente do exemplo dos Tinariwen e foram à procura do mundo nas suas canções. O que implica que embora "Tassili" venha anunciado com pompa devido às colaborações (excelentes) com TV on the Radio, Nels Cline (dos Wilco) e Dirty Dozen Brass Band, todo o esforço de adaptação está do lado dos convidados. Os Tinariwen tocam o que sempre tocaram, magnificamente, e sem ser o tom menos acre do acústico "Tameyawt" nem um grão de areia saiu do sítio.

Estrategicamente, "Tassili" parece pensado para combater a ameaça de que os Tamikrest - comandados pela voz envelhecida de Ousmane Ag Mossa e a sua guitarra enfeitada com wah-wah, pontualmente com apetite pela Jamaica - lhes possam roubar o trono de reis dos blues no deserto do Sahara. Mas "Toumastin", óptimo segundo álbum do jovem grupo, não põe ainda esse lugar em causa. Até porque, por muito moderada e eficaz que seja a modernização desta sonoridade pelos Tamikest, a verdade é que os Tinariwen se tornaram lenda pela dissemelhança do seu som, e não por facilitarem a vida aos ouvidos ocidentais.

Um outro sul dos EUA

Vários

Delta Swamp Rock

Soul Jazz; distri. Megamúsica

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Na década de 1970, os Rolling Stones, Bob Dylan, Paul Simon, Aretha Franklin ou Wilson Pickett viajaram até a uma cidadezinha no Alabama, sul dos Estados Unidos, chamada Muscle Shoals. Iam em busca de um pequeno estúdio, homónimo da cidade, por onde passaram vários nomes da soul da Atlantic e onde começou a germinar aquilo que hoje conhecemos como "southern rock" (chamemos-lhe, a partir daqui, rock sulista).

Instalado no coração conservador até ao delírio do "Bible Belt" de fanáticos religiosos e segregacionistas, um novo sul revelava-se. À distância de quatro décadas, quando nos atiram para cima da mesa a expressão "rock sulista", lembramo-nos do blues rock dos Allman Brothers Band e do "boogie" dos Lynyrd Skynyrd. "Delta Swamp Rock" surge para desfazer o equívoco. Porque havia muito mais. E o que havia no período 1967/1975 abarcado pela compilação era, na sua maioria, muito bom.

Como se lê no pequeno livrete que acompanha a edição, bem escrita e documentada e de design impecável, como habitual na editora britânica, o "rock sulista representava uma identidade pós direitos civis completada com a celebração da paisagem cultural da região e o seu modo de vida". Ou seja, o óptimo Tony Joe White, inspirado representante da chamada "blue eyed soul" (soul cantada por brancos, entenda-se), contando histórias da classe operária do sul em "Polk salad Annie", os Barefoot Jerry fazendo odes às Smoky Mountains em "Smokies" ou Bobbie Gentry, a imensa e obrigatória Bobby Gentry, a ultrapassar Tina Turner pela anca para, com voz arranhada de "soul woman", nos pôr aos saltos pela casa com o boogie lamacento de "Mississipi delta".

Mantendo um par de canções dos Lynyrd Skynyrd (sendo que são as duas boas e nenhuma as inevitáveis "Free bird" ou "Sweet Home Alabama"), e um trio das dos irmãos Allman, descobre-se um mundo admirável em que até Cher, na versão de "I walk on guilded splinters", de Dr John, soa a grande cantora e mulher de bom gosto. Nos Cowboy, por sua vez, estão uns distintos seguidores de Gram Parsons que os Vetiver devem estar para versejar a qualquer momento. Em Joe South, ele de "Hush", ele que tocou guitarra com Dylan em "Blonde on Blonde", aterramos num r&b ácido e feérico com néons a brilhar por todo o lado, coros femininos e guitarra em êxtase no refrão e South com o sotaque, os berros e os ecos que nos fazem ajoelhar a seus pés, repetindo o ritual habitual perante aqueles a quem reconhecemos grandeza. Mas, numa colecção onde encontramos figuras tutelares obrigatórias como Johnny Cash (pai desta gente toda) e Waylon Jennings (incógnito irmão mais velho desta gente toda) e, surpreendentemente, os Big Star de Alex Chilton (mas até eram de Memphis, portanto fazem sentido aqui), não precisamos de ir mais longe que a canção número cinco do primeiro CD para perceber a maravilha que temos em mãos.

"Stone fox chase": uns obscuros Area Code 615, formados por músicos de sessão da área e que tiveram vida curta dois álbuns. No início, uma harmónica e umas maracas: blues voodoo. Depois entra o bombo, ouve-se chocalho e congas, a bateria começa a meter-se por terrenos pecaminosos e quando damos por nós, estamos em pleno festim "funk-tribal-futurista", o pós refrão parece invenção de produtor de electrónica por vir e se isto é o Sul dos Estados Unidos que tínhamos na cabeça e se o ano é 1970, pois então já não temos certezas de nada e a ideia de progresso é uma coisa tramada. Mário Lopes

Zeca aqui e agora

Vários

REintervenção

Orfeu; distri. Movieplay

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Se fosse vivo, José Afonso teria celebrado esta terça-feira, 2 de Agosto, 82 anos. Fosse vivo e é provável que apreciasse com generosidade uma homenagem como "REintervenção", álbum em que catorze canções da sua obra riquíssima são recriadas por um conjunto de nomes eclético que vai do Vítor que cria uma fantasmagórica "Grândola Vila Morena" aos Terrakota, fiéis a si mesmos, a transformar "Coro da Primavera" num óptimo afro-samba-cítara-&-surrealismo.

Perante uma obra da dimensão da de José Afonso, músico maior do século XX (não só português, mas do globo), uma coisa era certa: qualquer versão ficaria num patamar abaixo do homenageado. Quando se prepara para ouvir a primeira delas, sabe-o também o ouvinte. O arranque, porém, é magnífico e não deixa um amargo de boca (para isso temos as inenarráveis versões, ignorantes da alma da música de José Afonso, dos Zeca Sempre). No início, quando ouvimos "Canção da paciência", encontro felicíssimo entre a guitarra rendilhada de Norberto Lobo e a voz, trovadoresca como raramente lhe ouvimos, de JP Simões, percebemos que "REintervenção" serve o propósito de homenagem da melhor forma possível. Ou seja, ao contrário dos supracitados Zeca Sempre, que, à boleia dessa tenebrosa ideia de actualização - "para as gerações mais jovens", ouvimos em voz de marketeer - transformam as canções de José Afonso em rock FM com os pés para a cova, os músicos de "REintervenção" puxam o autor de "Venham mais cinco" até si, mostrando, quando se completa o mosaico de canções, a forma como o seu legado se infiltrou (necessariamente, inevitavelmente) em diversas proveniências e estéticas.

"Eu vou ser como a toupeira", nas mãos dos Cool Hipnoise e Sam The Kid e na voz de Janita Salomé deixa os túneis subterrâneos e viaja a muitos mil metros de altitude em reverberações dub e folk psicadélico. "A formiga no carreiro", no piano e harmónio de Tiago Sousa, muta-se em paisagem impressionista e "Lá no Xepangara" mergulha profundamente no rio imenso da música africana - já sabemos e confirma-se: o afrobeat multifacetado dos Cacique 97 não falha. Ouvimos jazz sem palavras pelo pianista Filipe Raposo ("Que amor não me engana") ou Amélia Muge multiplicar-se nas belíssimas harmonias vocais da versão de "De sal de linguagem feito".

Sendo certo que um álbum desta natureza nunca será imprescindível, "REintervenção" é uma panorâmica, por interposta pessoa, para a riqueza e alcance da criatividade de José Afonso. Neste contexto, é o máximo a que os seus autores poderiam ambicionar. M.L.

Jazz

Orgânica orquestral

Um registo clássico que se afirma como uma das mais poderosas realizações free-jazz para orquestra. Rodrigo Amado

Bill Dixon Orchestra

Intents and Purposes

International Phonograph

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Com o ambicioso sub-titulo "the new sounds of the music of tomorrow", este extraordinário registo é mais uma das peças no puzzle histórico que afirma o trompetista e compositor Bill Dixon como uma das personagens chave no desenvolvimento criativo do jazz dos últimos 50 anos. Indisponível em CD durante anos, "Intents and Purposes" é considerada a sua obra-prima, um prodígio de abstracção, sensibilidade e pura orgânica orquestral que nos deixa perplexos ao realizar que estas gravações foram efectuadas há mais de 40 anos. Na altura, para garantir que a música soaria fiel aos sons que povoavam a sua imaginação, Dixon optou por escrever muitas das passagens que agora soam tão naturais e espontâneas como se tivessem sido improvisadas - uma integração perfeita entre escrita e improvisação que projecta com excepcional clareza os ambientes densos, escuros e misteriosos gravados pela banda, formação alargada que incuia, para além de Dixon, os saxofonistas Byard Lancaster e Robin Kenyatta, o trombonista Jimmy Cheatham, ou os contrabaixistas Jimmy Garrison e Reggie Workman, entre muitos outros. A música, difícil e exigente, plena de massa sonora dissonante, soa no entanto bem distante da dinâmica libertária do free-jazz da altura. Ao invés, é bem audível o cuidado e intenção que o trompetista sempre colocou nas suas obras, conferindo-lhe uma substância que desafia o passar do tempo.

Falecido o ano passado, Dixon nunca foi consensual, gerando acesas polémicas em torno da sua música e da sua forma de pensar o jazz. Foi um dos membros fundadores do Jazz Composer"s Guild, uma cooperativa de músicos que incluia Roswell Rudd, Cecil Taylor e Paul Bley, entre outros, e este foi o seuterceiro registo em nome próprio, sucedendo-se a dois albuns gravados em parceria com o saxofonista tenor Archie Shepp.

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