Vantagens de grandes coligações ao centro
Esta decisão reveste-se de um vasto alcance, quer pelos objectivos que pretende atingir, quer pela natureza da controvérsia que gerou. A Alemanha, que apresenta no essencial bons indicadores económicos e financeiros, sobretudo se comparados com os países do Sul, não deixa de ter no plano social uma forte lacuna correspondente aos baixos salários auferidos por uma parte significativa da população. É verdade que essa circunstância resultou, em grande medida, da aplicação de um amplo conjunto de reformas promovidas pelo antigo chanceler social-democrata Gerhard Schröder com o intuito de relançar a competitividade económica do país. A Alemanha, nessa altura, ainda estava a pagar o preço da reunificação e precisava de se adaptar ao novo quadro económico internacional decorrente da forte liberalização dos fluxos financeiros e das trocas comerciais. Se é indiscutível que, pelo menos no curto prazo, essa finalidade foi alcançada, também é certo que se multiplicaram as baixas remunerações nos empregos menos qualificados, o que conduziu a um agravamento das desigualdades salariais. Esta situação constitui a face menos brilhante de uma sociedade que exibe uma taxa de desemprego de 4,9%.
Num novo contexto caracterizado, justamente, pela retoma da competitividade da economia alemã e pela grave crise que atormenta uma parte substancial da Europa, o actual Governo germânico optou por estabelecer o já referido salário mínimo. Deste modo, procura suprir-se uma debilidade social e estimular a actividade económica através do aumento da procura interna. Daqui poderá resultar um aumento das importações provenientes dos parceiros europeus com todas as implicações positivas daí resultantes. Essa é pelo menos a expectativa de vários governos de países da União Europeia que há muito vinham reclamando a alteração da política de rendimentos praticada na Alemanha. O passo agora dado, não isento de controvérsia pública, vai claramente na direcção certa e não deve ser menosprezado.
Aí está a demonstração das vantagens que em determinadas circunstâncias históricas podem resultar da existência de grandes coligações ao centro – permitem a realização de reformas equilibradas capazes da promoção de uma maior justiça social sem ofender alguns elementares princípios de racionalidade económica. Tudo isto, claro, partindo do princípio de que queremos continuar a viver no âmbito de uma economia social de mercado, dentro do quadro institucional europeu e abertos a um amplo relacionamento com o resto do mundo. Aqueles que preferem outros modelos terão, certamente, opinião diversa.
2. O singular modelo constitucional grego lançou o país numa nova crise política. Esta crise projecta-se em toda a Europa e tem suscitado múltiplos comentários polémicos por parte de vários dirigentes políticos europeus. A possibilidade de uma vitória eleitoral do Syriza, organização política oriunda da extrema-esquerda e apostada numa reorientação drástica das políticas económica e orçamental da Grécia, despertou um verdadeiro temor em várias chancelarias do nosso continente. De certa maneira, assistimos a uma transnacionalização do debate político helénico que questiona os nossos conceitos tradicionais de soberania e de representação democrática. Quando o Der Spiegel insinua que o Governo alemão considera inevitável a saída da Grécia da zona euro em caso de vitória desse partido político, ou quando o Presidente francês chama a atenção para a necessidade do integral cumprimento dos compromissos assumidos pelos gregos, perpassa o receio de uma intromissão indevida na vida interna desse país. Alguns falam mesmo de um atentado à soberania nacional e de uma chantagem de natureza antidemocrática. A questão parece-me ser um pouco mais complexa.
Os gregos, tal como os demais povos europeus, têm todo o direito de fazer as opções eleitorais que muito bem entenderem. A sua autonomia decisória não pode ser posta em causa, sob pena de ofensa absoluta aos princípios em que assenta a organização política de um Estado soberano demoliberal. As opções, quaisquer que elas sejam, têm consequências que não devem ser elididas no período pré-eleitoral. Estando a Grécia integrada na EU e na zona euro, essas consequências extravasam o quadro nacional grego. É, pois, natural neste contexto que se verifique uma apetência pela discussão da questão grega noutros espaços políticos nacionais e no emergente espaço político europeu. Ora, no actual contexto institucional, caracterizado por uma indefinição entre a intergovernamentalidade e a integração comunitária de tendência federalista, tais situações proporcionam inevitavelmente o surgimento de múltiplos equívocos. Temos de saber conviver com eles. Não deixa, aliás, de ser irónico que aqueles que passam todo o tempo a atacar veementemente as opções políticas de Angela Merkel e do seu Governo não queiram agora reconhecer ao partido que ela dirige o direito a ter uma opinião sobre o que se está a passar na Grécia.
3. Morreu em Dezembro passado o Professor Doutor António Fernandes da Fonseca, eminente catedrático da Faculdade de Medicina do Porto, autor de uma vasta obra científica na sua área de especialização, a Psiquiatria, e grande conhecedor e divulgador da obra literária de Teixeira de Pascoaes. Teve uma breve passagem pela política activa exercendo o cargo de deputado na Assembleia da República eleito pelo PS, função que desempenhou com tal frontalidade que lhe causou sérios incómodos – espírito livre e independente jamais aceitaria aninhar-se fosse perante quem fosse. Amarante e o Porto, respectivamente a terra onde nasceu e a cidade onde desenvolveu o seu labor profissional e intelectual, devem-lhe uma homenagem póstuma. Espero que a Assembleia da República se não esqueça de evocar a sua memória.