Uma defesa essencial
Fiquei boquiaberto por dentro. Após duas ou três perguntas, fiz questão de lhe explicar que o que lhe tinham dito era mentira. A Constituição portuguesa não é “socialista”. O Tribunal Constitucional não é um “legislador negativo”. A Constituição pode ser extensa, mas as sentenças do tribunal basearam-se em princípios básicos, constantes de qualquer Constituição. Reformas em Portugal que respeitem o Estado de direito são sempre possíveis.
Finalmente, disse-lhe: o consenso sobre a Constituição portuguesa é o mais amplo de qualquer assunto no país, à exceção da seleção nacional, do bacalhau e da mãezinha. Em termos políticos, não conheço outro maior. Contei-lhe do encontro de defesa da Constituição que terá lugar amanhã na Aula Magna de Lisboa e expliquei como os seus promotores iam de uma ponta da esquerda à outra da direita. Creio que entendeu — e espero que comunique aos seus superiores — que a pressão sobre a Constituição portuguesa só pode dar ricochete.
O que tenho pena de não ter chegado a dizer foi isto: a única minoria ativista em Portugal não é a do Tribunal Constitucional. É a de alguns fundamentalistas no Governo, que não têm sequer a maioria dos seus partidos consigo, e que provavelmente lhe encomendaram o sermão. Neste ponto, isto já não pode ser coincidência. Portugal padece do bizarro caso de um governo que faz campanha no exterior contra a sua Constituição, atribuindo-lhe a impossibilidade de reformar o país.
Tal campanha, no entanto, não se destina apenas a mascarar a incompetência do Governo. Ela encontra eco entre aqueles, aqui ou fora, que consideram que os direitos sociais são, de forma automática e incriminatória, “socialismo”. Depois de décadas em que estes direitos se viram crescentemente reconhecidos por Constituições de todo o mundo, há uma vaga reacionária que aspira a revogar esse adquirido (frequentemente com ajuda de instituições como o FMI, na América Latina dos anos 80, na Europa de Leste dos anos 90, e agora conosco).
O mais pernicioso é o argumento de que, no fundo, os tribunais constitucionais interferem com o processo democrático, ao oporem-se por vezes a medidas de governos eleitos. Este argumento esquece quão frágil é a soberania de governos em momento de necessidade. E ignora quanto a maioria da população espera proteção por parte dos seus tribunais.
É pois essencial, para todos os que assim acreditem, demonstrar publicamente que o problema do país não está na Constituição, nem no Tribunal Constitucional. É um apelo necessário: em época de crise, os tribunais podem ser das poucas instituições que conseguem compensar o fundamentalismo austeritário com uma defesa segura e constante da democracia e dos direitos humanos.
Digamo-lo sonoramente, para que nos ouçam dentro e fora de fronteiras.