Um ocidental sem vergonha do Ocidente
Estava eu tranquilamente a reler algumas páginas de um dos livros de Glucksmann quando, de súbito, aparece na televisão a imagem de alguns deputados socialistas a abraçarem o líder da CGTP na praça situada em frente à Assembleia da República.
1. Lembro-me como se fosse hoje. Na livraria Leitura, na época talvez a melhor livraria portuguesa, havia, logo à entrada, um pequeno espaço dedicado a edições em língua francesa e inglesa das obras de diversos pensadores contemporâneos. Naquela tarde não resisti à tentação de comprar o livro La Cuisinière et le Mangeur d'Hommes: Réflexions sur l'État, le Marxisme et les Camps de Concentration, de André Glucksmann. Como naquela época cultivava a rotina de não ter rotinas, troquei com gosto uma qualquer aula na faculdade por uma sôfrega leitura que só terá terminado a altas horas da noite. Estávamos no Outono de 1983. A dissidência soviética já havia adquirido uma vasta ressonância internacional devido à publicação de O Arquipélago de Gulag de Alexandre Soljenitsin. Thatcher e Reagan pontificavam politicamente no mundo anglo-saxónico, em França, François Mitterrand preparava-se para, em nome da opção europeia, abdicar de um programa político caracterizado por uma mistura de neomarxismo com neokeynesianismo. A União Soviética parecia eterna na sua impressionante imobilidade.
Glucksmann já não era um novato. Nascido em 1937, agregado de Filosofia a partir de 1961, assistente de Raymond Aron na Sorbonne, autor de uma tese de doutoramento sobre a guerra e sobre Clausewitz, participara activamente nos acontecimentos de Maio de 68 e militara durante dois anos na celebérrima Gauche Prolétarienne de orientação maoísta. Nos inícios dos anos 70, porém, rompera com o pensamento marxista, iniciando um percurso doravante marcado por um extremoso apego ao princípio do respeito pelos Direitos Humanos, fundado no reconhecimento da primazia do valor superior da liberdade individual. Foi nessa época, aliás, que escreveu o livro atrás referido e um outro que tive oportunidade de ler mais tarde intitulado Les Maîtres Penseurs. Nessa época tornou-se uma figura de grande expressão mediática, integrado no grupo dos chamados “novos filósofos”, onde pontificavam pensadores tão diversos como o inspirador comum Maurice Clavel e o bem mais superficial Bernard-Henri Lévy. Tinham em comum a denúncia do totalitarismo soviético. Nisso não eram especialmente inovadores, já que outros antes deles — com particular destaque para o próprio Raymond Aron — haviam alertado, contra a corrente intelectual dominante, para a verdadeira natureza dos regimes comunistas de filiação marxista. Tornaram-se, contudo, especialmente populares. Os tempos tinham mudado e a gerontocracia de Moscovo já não suscitava especial entusiasmo. Não chegava, porém, constatar o óbvio — um filósofo não se atém à superfície das coisas. Procurando desqualificar o marxismo, Glucksmann optara por contestar toda uma tradição do pensamento ocidental que, de Platão até Hegel, teria contribuído para a consagração de um arquétipo conflituante com o valor essencial da liberdade. O Gulag, essa infame invenção bolchevista, seria o corolário de séculos de pensamento desaguados no materialismo histórico de Karl Marx. Contudo, tal análise nunca significou uma rendição a qualquer tipo de irracionalismo nem tão-pouco o impediu de contestar com igual veemência o legado conceptual de pensadores como Nietzsche e Freud. Nisto consistia em grande parte a sua originalidade. Os seus autores de referência eram, afinal, Montaigne e Voltaire.
Nos últimos trinta anos, fiel ao compromisso com a causa dos Direitos Humanos, André Glucksmann esteve presente em múltiplos palcos da política internacional. Fê-lo em obediência a uma ideia: os Homens não devem agir preferencialmente em função de uma noção metafísica do Bem mas antes tendo como referência a preocupação de combater manifestações concretas do Mal. Isso impediu-o de cair na tentação do dogmatismo ou de soçobrar perante o apelo do relativismo cultural. Tal só foi possível pela via do reconhecimento da vocação universal dos Direitos Humanos. Em nome disso adoptou posições, tomou partido, correu riscos; acertou e também se enganou. Nunca deixou de estar presente. A esquerda bem pensante não lhe perdoou o apoio à intervenção militar no Iraque — identificaram-no imediatamente com o neoconservadorismo norte-americano. Também aí estavam errados por uma simples razão: é preferível falhar na análise por amor à liberdade do que acertar por espírito de servidão.
Glucksmann era um ocidental sem vergonha do Ocidente, ainda que fosse um crítico radical do colonialismo, do imperialismo e de toda e qualquer forma de eurocentrismo. Simplesmente, enquanto seguidor de espíritos tão livres como o de Montaigne e de Voltaire, reconhecia ao mundo Ocidental uma característica indelével: o culto da dúvida, do cepticismo, da razão crítica. Desesperado com um certo niilismo predominante no espaço cultural europeu, voltou-se para os Estados Unidos depositando desproporcionadas expectativas na acção dos dirigentes políticos daquele país; mas também nesse erro havia grandeza e generosidade.
Há um ano atrás, já afectado pela doença que o vitimaria, pediu ao seu amigo Henri Lévy que fosse porta-voz de uma mensagem enviada aos ocupantes da praça Maidan, em Kiev. O pequeno texto começava da seguinte forma: “chamo-me André Glucksmann e dizem que sou filósofo”. A seguir fazia o elogio da luta pela liberdade. Era esta a sua têmpera.
Estava eu tranquilamente a reler algumas páginas de um dos seus livros quando, de súbito, aparece na televisão a imagem de alguns deputados socialistas a abraçarem o líder da CGTP na praça situada em frente à Assembleia da República. Lá estavam eles respeitosamente atrás de Jerónimo de Sousa, numa alegria tão incontida quanto pueril. Fechei o livro e desliguei a televisão. Um dia destes voltarei a abrir o livro e as páginas conterão as mesmas frases de sempre. Nessa altura, quando olhar para a televisão, espero que as imagens já sejam outras.
2. Poucos no nosso país compreenderam o carácter multímodo da cultura como Paulo Cunha e Silva. Espírito voraz, apaixonado e jovial, já tinha marcado a vida da cidade do Porto quando esta foi Capital Europeia da Cultura, em 2001. Nos últimos dois anos, enquanto Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto, estava a pôr em prática um engenhoso e ambicioso plano de desenvolvimento cultural da cidade que abarcava todas as dimensões, da criação ao urbanismo, da coesão social ao lazer. Fazia-o com notório gosto e generosidade, manifestando sem reservas o seu encantamento diante de um jovem talento como diante de um artista consagrado. Transformou a programação cultural numa arte: o seu projecto artístico era revelar os projectos artísticos dos outros, criando com eles narrativas que, sendo indóceis e desafiantes, abriam caminho à alegria. É costume dizer-se que ninguém é insubstituível. Ele era-o.