Soares e os complexos da nova direita
A nova e a velha direita não conseguem perdoar a Mário Soares tê-los salvo da ameaça comunista e transformado pacificamente a revolução numa democracia constitucional.
Essa campanha é uma homenagem duplamente reveladora. Por um lado, a nova direita não consegue deixar de ser a herdeira da velha direita, cujo ódio patológico por Mário Soares, partilhado pelo salazarismo e pelo marcelismo, parece ter transitado subterraneamente para as gerações seguintes da direita democrática. Por outro lado, a nova e a velha direita não conseguem perdoar a Mário Soares tê-los salvo da ameaça comunista e transformado pacificamente a revolução numa democracia constitucional.
Durante a revolução, a direita ficou paralisada perante Álvaro Cunhal e a força do Partido Comunista. Na altura, os complexos das direitas, tanto dos que se tinham esquecido de defender a liberdade perante o regime autoritário como dos que não o tinham conseguido reformar, ou dos que não souberam resolver o problema colonial, traduziram-se num delírio ideológico, por vezes extravagante, expresso, entre outras, na sua proposta de definir como finalidade do projecto constitucional português a construção de uma sociedade sem classes. Mas a contribuição da direita política para conter a estratégia revolucionária do Partido Comunista foi nula, ou quase nula.
Soares e o Partido Socialista são os principais responsáveis pela derrota de Cunhal e do Partido Comunista. Cunhal, de facto, nunca pôde perdoar a Soares ter imposto um rumo democrático à revolução portuguesa. A direita nunca pôde perdoar a Soares ter sido ele a salvar Portugal do comunismo e da guerra civil.
O facto de ser um grande personagem do gaullismo não impediu André Malraux de reconhecer o feito de Soares e dos socialistas portugueses: na sua fórmula, pela primeira vez, os mencheviques tinham derrotado os bolcheviques no campo da revolução. No mesmo sentido, Raymond Aron considerava que a liberdade europeia estava em jogo na revolução portuguesa e reconheceu a intervenção decisiva de Soares para impor, contra as suas previsões, uma transição democrática. Samuel Huntington, a encarnação americana do pessimismo spengleriano, considerou a improvável vitória da democracia na revolução portuguesa como o início de uma “terceira vaga” de democratização que chegou de Lisboa até Varsóvia e Moscovo para pôr fim ao comunismo soviético e à Guerra Fria.
A direita, a nova e a velha, não podem perdoar nada disso a Mário Soares e preferem nem sequer reconhecer as consequências europeias e internacionais da derrota do comunismo em Portugal. Sem essa demonstração inédita da vulnerabilidade comunista, nem a transição democrática espanhola teria sido como foi, nem a evolução italiana ou francesa teriam sido como foram, nem a social-democracia europeia teria mudado para tornar possíveis Tony Blair ou Felipe González. Para a nova direita, nada disso tem a menor importância. Como os seus maiores, a direita portuguesa ainda não desistiu de ser castiça.
Quando Churchill fez noventa anos, A.J.P. Taylor, um grande historiador cujas credenciais de esquerda estavam bem firmadas, escreveu que o antigo primeiro-ministro tinha salvo o seu país no momento mais difícil da sua história. Soares não foi menos importante para o seu país no período crítico da revolução, mas a nova direita insiste em não reconhecer que a democracia ocidental é um regime antigo e com boas maneiras. Para ser liberal, a nova direita portuguesa devia ser soarista, como os trabalhistas ingleses são churchillianos.
Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)