Reforma do Estado: o disco voador de Paulo Portas
O guião da reforma do Estado é na verdade o guião do Governo para a negociação do programa cautelar em que o PS terá de entrar.
O que até nem espantaria num texto que por erro ou preguiça confunde a reforma com minudências, pormenores e generalidades mais próprias do um programa de governo (de que Governo?) do que de uma refundação do Estado. E onde o estímulo às vagas atlânticas para melhorar a economia podia perfeitamente ter sido equacionada, a par de outras medidas de pormenor.
Tudo aponta portanto para que o Governo tenha medido água com um guião cheio de efeitos especiais e um argumento excessivamente ideológico. Ninguém percebeu exactamente do que trata nem para que é que serve tal documento. Quando muito, a reforma do Estado só pode ser descrita como um OPNI (Objecto Político Não Identificado ou, eventualmente, Objecto Portista Não Identificado).
Tal como os discos voadores, a reforma do Estado não existe, mas dá muito que falar. E o certo é que este OVNI político vai andar nos céus da política nos próximos meses. Ora se, em matéria de substância, está visto que pouco ou nada acrescenta ao que já se conhecia das ideias deste Governo, vale a pena analisá-lo do ponto de vista do timing político.
Ao contrário das ondas gigantes da Nazaré, que aparecem quando menos se espera, o guião da reforma do Estado apareceu quando toda a gente estava farta de esperar por ele.
Talvez por isso, uma parte do documento é um exercício psicanalítico de autojustificação do Governo. Não só pela demora em apresentar o documento (apesar de este pugnar por um Estado mais eficiente) como para explicar por que é que a reforma só aparece na segunda metade da legislatura.
Transitando da psicanálise para a auto-ironia, o Governo garante-nos, neste documento, que “reformar é diferente de cortar”. Então por que passaram o tempo a cortar em vez de reformar? O executivo justifica-se culpando as metas da troika que era preciso alcançar (“Mudar de modelo é diferente de cumprir metas”).
Tinham-nos dito que as metas eram a consequência das reformas. Mas se não foi para reformar, afinal de contas para que serviram os cortes?
Se não se sabe o que o Governo andou a fazer nos últimos dois anos (com honrosas excepções para áreas como a saúde ou a justiça) para além de cortes, também não é a partir deste documento que ficamos a saber o que o Governo irá fazer nos próximos dois anos.
Tudo é esquisito. Excepto o timing. Ao transformar a (chamemos-lhe assim) reforma do Estado num programa de médio prazo, que precisa de consensos alargados e de uma revisão constitucional “cirúrgica”, que é necessária para enfrentar o chamado período pós-troika, o Governo está na verdade a querer marcar o terreno do que será uma negociação com o PS do programa cautelar que sucederá ao resgate, caso tudo corra bem. O debate do Orçamento do Estado é o próximo palco desta conversa, que se adivinha longa.
A utilidade deste (chamemos-lhe assim) pedaço de texto e desta soma de banalidades é portanto táctica e não estratégica: é uma linda canção para embalar a troika e mostrar aos credores e aos mercados como a maioria está cheia de boas intenções. Até está disponível para escrever o programa de Governo do PS, caso os socialistas ganhem em 2015. E só por ingratidão estes poderiam recusar tanta amabilidade, não é?
Os mercados e as troikas deste mundo olham as coisas ao longe. Vêem a onda que passa na televisão mas não o canhão que está debaixo de água. Com o guião, o Governo quer começar a construir uma percepção favorável junto dos credores externos, com quem negociaremos o pós-memorando e que decidirão, também eles, pensando na percepção dos mercados.
Ao contrário do que diz o Governo, o objectivo da reforma não é guiar-nos no caminho da soberania reencontrada, mas preparar uma nova etapa em que a nossa soberania permanecerá limitada.