Perfil: Portas, o homem para quem fazer previsões em política "é um grande atrevimento"

Em Fevereiro de 2011, o jornalista Luís Miguel Queirós traçou o retrato de Paulo Portas, pouco antes de este voltar ao Governo, em nova coligação com o PSD. É esse perfil que agora é republicado, sem qualquer alteração às referências temporais.

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Paulo Portas Miguel Manso

Acha que Céline é "uma absoluta excepcionalidade literária", mesmo que "o seu anti-semitismo seja execrável". À poesia ainda torce um bocado o nariz, mas desde que uma amiga o convenceu a ler Herberto Helder sente-se tentado a rever a sua posição. Está decidido a publicar um romance e quer escrever um argumento para cinema. Não exclui tirar o curso de Arquitectura, a acrescentar ao de Direito, que nunca exerceu. Nunca quis ser advogado, e juiz estava fora de questão: "Não suportaria a ideia de ser responsável pela privação de liberdade de outra pessoa, ou de ter de fazer um juízo quase moral sobre ela." Para já, talvez possamos ficar por aqui. Como retrato do líder da direita portuguesa, o homem que soma dez anos à frente do CDS-Partido Popular e, este domingo, concorrerá sozinho às directas do partido, o famoso Paulinho das feiras, que vocifera contra as fraudes do rendimento social de inserção e exige mão pesada para garantir a segurança nas ruas, é já suficientemente estranho.

É claro que este inventário de predilecções e projectos pessoais traduz apenas uma parte da imagem que Paulo Portas deu de si próprio na conversa que manteve com o P2, um diálogo que se foi desenvolvendo nos brevíssimos intervalos do infatigável périplo que o líder do CDS está a fazer pelas distritais do partido, mas é uma parte que provavelmente surpreenderá muitos dos que só o conhecem de o ver na televisão, fazendo campanha nos mercados, com os seus proverbiais colarinhos abertos, ou pedindo satisfações, no Parlamento, ao primeiro-ministro José Sócrates. "Apanham-me sempre com o dedo em riste na Assembleia", queixa-se, co-responsabilizando as televisões pela imagem de severidade que se lhe foi colando.

Paulo Portas é hoje, aos 48 anos, o político português no activo há mais tempo à frente de um partido, embora seja também, com a recente excepção de Pedro Passos Coelhos, líder social-democrata, o mais novo.

Prepara-se para iniciar um novo mandato sem quaisquer adversários internos credíveis à vista e já fez saber ao Partido Social Democrata (PSD) que está disponível para integrar um futuro governo de coligação. É este o homem que fala em publicar romances, que quer fazer arquitectura e que está determinado a ir a Londres tirar um curso de argumentismo que a irmã, Catarina, lhe descobriu, "porque ninguém nasce a saber escrever para cinema".

Parece um pouco desconcertante, mas imaginemos por um momento quem assim se pinta não é este Paulo Portas actual, de quem os jornais já vão profetizando que irá ser o Cunhal da direita portuguesa, mas esse irrequieto Paulo Portas de 30 anos, director do semanário O Independente, crítico implacável e desdenhoso de um cavaquismo que lhe parecia insuportavelmente cinzento e provinciano, e que teve manifesto prazer em ajudar a enterrar, sonhando-se como paladino de uma direita arejada, cosmopolita e intelectualmente sofisticada. A esse não custa nada a imaginá-lo em tardias incursões cinéfilas, ou seguindo até ao fim da noite a explosiva coloquialidade e as geniais ironias de Céline.

O menino e o PREC
A pergunta a fazer, portanto, talvez seja esta: as responsabilidades políticas que Portas foi assumindo levaram-no a construir uma imagem pública que, em muitos aspectos, não coincide com o seu rosto privado, ou transformaram-no, de facto, noutra pessoa? Ele próprio conta que Miguel Esteves Cardoso, com quem fundou O Independente, lhe disse que "não conhecia ninguém cuja imagem pública estivesse tão distante da privada". José Bourbon Ribeiro, que o acompanhou no Independente e no CDS e foi, depois, seu chefe de gabinete nos governos de Durão Barroso e Santana Lopes, garante que só há um Portas e nunca houve outro: "A sua imagem pública pode fazer parecer que são dois, mas é só um." O Paulo Portas "bem-disposto, workaholic e de sentido de humor refinado" que conheceu na redacção do Independente, voltou a encontrá-lo, diz, no líder partidário e no ministro da Defesa. O dirigente centrista António Pires de Lima, que o conhece desde os bancos da escola primária, também não tem dificuldade em reconhecer no actual presidente do CDS o miúdo que, "aos 11 ou 12 anos, discutia política no autocarro do Colégio S. João de Brito".

Apesar deste aparente consenso, a verdade será um bocadinho mais complexa. É provável que Portas tenha mudado menos do que parece, mas também é possível que, no fim de contas, tenha mudado mais do que gostará de reconhecer.

Uma burocrática cronologia do seu trajecto político apontaria como data fundamental o dia 22 de Março de 1998, quando é eleito presidente do CDS no congresso de Braga, vencendo Maria José Nogueira Pinto, a candidata apoiada pelo líder cessante, Manuel Monteiro.

Mas os momentos verdadeiramente decisivos no trajecto que levou esse rapaz que gostava de desenhar e sonhava ser arquitecto a líder incontestado da direita portuguesa, pelo menos da que se assume como tal, podem bem ser outros, mais difíceis de associar a um dia exacto.

O primeiro terá ocorrido ainda em 1974, quando, aos 11 anos, observa com desconforto e repulsa aquilo a que hoje chama "a anarquia do PREC [Processo Revolucionário Em Curso]". Uma reacção, note-se, que não é óbvia. Aos 11 anos, boa parte dos rapazes da sua geração terá provavelmente achado emocionante e divertida a desordem do pós-25 de Abril. Ele não. "Gosto imenso da liberdade, mas não gosto, nem nunca gostei, da anarquia", diz. "O meu primeiro instinto político foi contra o caos." O Portas de hoje não se revê na maior parte dos rótulos que lhe são aplicados pelos seus opositores, como os de populista ou demagogo, mas admite que há um que é verdadeiro: "Chamam-me securitário e sou mesmo, tenho uma crescente impaciência para sistemas onde não são pedidas responsabilidades às pessoas pelo que fazem." Esse apreço pela ordem pode ter crescido, mas vem de longe.

Filho do arquitecto Nuno Portas, católico de esquerda, e tendo como padrinhos de baptismo a romancista Maria Velho da Costa, uma das "três Marias" que enfureceram o regime de Marcello Caetano com as libertárias Novas Cartas Portuguesas, e o arquitecto e antifascista Nuno Teotónio Pereira, preso em Caxias quando se deu o 25 de Abril, o jovem Paulo, confrontado com um país dividido pelo PREC, decide que o seu lado da barricada é à direita.

Novamente, uma escolha que não parecia nada inevitável. Mas é preciso ver que faltou citar, na equação, a sua mãe, Helena Sacadura Cabral, sobrinha do célebre aviador, com quem Paulo ficou a viver quando os pais se divorciaram. Católica e de educação tradicionalista, até nem seria propriamente o protótipo de uma senhora da burguesia do antigo regime. Licenciara-se contra a vontade dos pais, fora a primeira mulher portuguesa a ser admitida no Banco de Portugal e, como educadora, tinha noções um pouco extravagantes no que respeita aos livros que devem recomendar-se a um adolescente. "Tive algumas leituras obrigatórias", conta Paulo Portas. "Aos 15 anos, a minha mãe disse-me para ler o Voyage au Bout de la Nuit, do Céline." Miguel Portas, o seu irmão mais velho, dirigente do Bloco de Esquerda (BE), não duvida de que o facto de ter ido viver com o pai, aos 12 ou 13 anos, e de o irmão ter permanecido com a mãe, marcou as opções políticas que ambos acabaram por fazer. Paulo não exclui essa influência, mas tem outra explicação. "A primeira ideia política do Miguel foi em confronto com um regime que não era livre, lembro-me de saber que o meu irmão tinha ido a uma manifestação não autorizada e de ter regressado a casa com o cabelo rapado, porque tinha estado na polícia; é uma imagem que nunca mais me saiu da cabeça." A diferença de quatro anos e tal que os separa, e a circunstância de ter ocorrido o 25 de Abril de 1974, foi o bastante, argumenta Paulo, para que lhe estivesse reservada uma iniciação diferente. "A primeira ideia política que eu tive foi em confronto com o caos."

Maldita matemática
Como muitas famílias da época, a de Portas apanhou com algumas ondas de choque do PREC. "Parte da família da minha mãe teve de voltar de África e parte da do meu pai apanhou com a reforma agrária e perdeu as terras; pessoas próximas de nós tiveram de sair de Portugal", conta.

O patriarca da família era o avô Leopoldo Portas, um português nascido em Lisboa, mas filho de galegos. Miguel, Paulo e Catarina nascida em 1969 de um segundo casamento de Nuno Portas faziam férias alternadas na quinta da família em Tomiño, junto a Tui, e em Vila Viçosa, onde Leopoldo se radicara e casara com uma alentejana, Umbelina. Paulo cresce indelevelmente marcado por este seu avô. Engenheiro de minas e empresário, "dantes dizia-se industrial", Leopoldo era "um católico muito empenhado" e um homem do regime. Foi procurador à Câmara Corporativa, autarca, dirigente local da União Nacional.

Era também, diz Paulo, "um homem de extrema bondade e de um rigor irrepetível".

Gostava de discutir política à mesa e, após o 25 de Abril, os debates tornaram-se mais animados. "Na geração do meu pai havia dois tios mais à direita e outros dois mais à esquerda." Mas os Portas tinham "um fortíssimo sentido de família" e os concorridos almoços de Páscoa e de Natal não só incutiram em Paulo Portas um interesse precoce pela política, como também constituíram um aprendizado de tolerância.

"Com opiniões tão contrastadas, só se podia mesmo ser tolerante." Esta pulverização ideológica passou, como é público e notório, para a sua geração, mas o mais significativo, diz Paulo, é que "todos mostram um empenhamento qualquer na sociedade". Um impulso que atribui à formação católica que todos partilharam.

Miguel Portas, que se dá muito bem com o irmão, mas tem natural pudor em falar dele, lembra apenas que Paulo foi, de facto, uma criança precoce, e recorda em particular o seu gosto e o seu talento para o desenho. "Fazia fanzines e bandas desenhadas com batalhas, e tinha muito jeito para o detalhe", diz ao P2.

Sinais que podiam prenunciar que o arquitecto Nuno Portas tinha ali um potencial sucessor. "Adoraria ter sido arquitecto, mas uma das coisas que mudaram a minha vida chama-se Matemática." Foi ela que o impediu de seguir a sua vocação e o "atirou para o Direito", curso que frequentou com a consciência de que "jamais iria exercer".

O fascínio por Sá-Carneiro
Mas não era só para o desenho que Portas mostrava um talento precoce. Mesmo tendo em conta que, como ele próprio lembra, é "da geração que apanhou o 25 de Abril com 11 anos e foi obrigada a começar muito nova", o seu fascínio pela política era incomum.

António Pires de Lima diz que "o Paulo sempre teve interesses diferentes dos que tinha a generalidade dos miúdos". Enquanto ele, António, gostava de desporto, Paulo só se interessava por política e aproveitava as viagens na camioneta escolar para evangelizar os seus condiscípulos. "Ia muitas vezes a minha casa e passávamos as tardes a jogar subbuteo [um futebol de mesa então muito em voga], mas logo que o meu pai chegava a casa ele ficava por lá a conversar com ele, e não comigo." Ex-bastonário da Ordem dos Advogados, o pai e homónimo de António Pires de Lima virá a ser, muitos anos depois, o advogado de Paulo Portas no caso Moderna.

A primeira intervenção política pública do jovem Portas ia-lhe dando uma grande chatice. Em 1978, aos 15 anos, envia para o Jornal Novo um texto intitulado "As três traições", que acusava Mário Soares e Freitas do Amaral, que estavam juntos no Governo de coligação PS-CDS, de terem traído o país, e não tratava muito melhor o então Presidente da República, Ramalho Eanes.

Eanes processa o autor e o imberbe panfletário chega a ser interrogado em tribunal. Nuno Portas, evocando mais tarde este episódio, conta: "Quando lhe perguntam se tinha tido a intenção de ofender, diz: 'Não respondo.' Era a resposta que os PC davam à PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado]. Aí percebi que o miúdo tinha fibra." Paulo Portas era desde 1975 militante da Juventude Social Democrata (JSD) e, no final de 1978, filiou-se no PSD. O seu cartão de militante foi assinado por Francisco Sá-Carneiro, o primeiro político que admirou sem reservas. Fascinava-o "o carisma e a radicalidade", mas também a "serenidade" do fundador do então PPD. "Se ele não tem morrido, é possível que me tivesse mantido como militante do PSD, ou, pelo menos, como sá-carneirista." Em 1980, com a morte de Sá-Carneiro em Camarate ficou, diz, "um bocado à deriva, sem pai político".

Ainda estudante liceal, ingressara como estagiário no semanário O Tempo, de Nuno Rocha. "Comecei por fazer o que a tarimba manda: obituários, coisas de sociedade." Mais tarde tornar-se-á colunista político.

Terminado o liceu, inscreve-se, em 1979, no curso de Direito da Universidade Católica, onde conhece Manuel Monteiro. Nos anos que se seguem à licenciatura, não tem actividade partidária, desfiliara-se do PSD em 1982, mas a política continua ser um interesse central.

Mantém uma coluna no Semanário e frequenta um grupo de reflexão que se reúne no escritório de Luís Nobre Guedes e que inclui, entre outros, António Lobo Xavier. "Alguns de nós estavam no CDS, outros no PSD, mas éramos todos gente nova e inconformada." É em boa medida este grupo que vai estar na origem do Independente.

Tirar a direita do gueto
"O acaso muda a vida das pessoas", constata Portas, evocando o seu "encontro fortuito", em 1987, com Miguel Esteves Cardoso na livraria lisboeta Bucholz. "Foi uma espécie de encontro de almas: O Independente nasceu naquele momento", garante Portas, com uma emoção que pode fazer pensar em Pessoa assinalando o nascimento do seu heterónimo e mestre Alberto Caeiro.

"O Miguel estava cansado do Expresso e eu, embora gostasse muito do Vítor Cunha Rego, com quem aprendi imenso, e do Vasco Pulido Valente, que continuo a admirar muito, achava que o Semanário se tinha transformado num suplemento da revista Olá." Decidem criar um jornal e, para financiar o projecto, recorrem a Luís Nobre Guedes, que, diz Portas, não só arranjou investidores cujos negócios, até aí, "não tinham nada a ver com a comunicação social" - era o caso, por exemplo, do futuro patrão da TVI, e hoje proprietário do grupo Leya, Pais do Amaral -, como "os convenceu de que um sujeito que tinha uma coluna no Semanário e outro que tinha uma coluna no Expresso eram capazes de fazer um produto interessante e que não fosse economicamente ruinoso".

O Independente foi, antes de tudo, diz Portas, "um fenómeno de cultura", que "trouxe ao jornalismo português uma modernidade e uma sofisticação estética que ele não tinha". E divide os méritos não apenas com Esteves Cardoso, mas com o "genial" designer gráfico Jorge Colombo.

Num país "muito maçador do ponto de vista institucional e com um jornalismo muito previsível", O Independente, diz, veio mostrar que "a inteligência podia estar à direita e que intelectual não era sinónimo de esquerda". Mas, nota, nem ele nem Esteves Cardoso eram "muitos alinháveis com as direitas orgânicas" da época. "Tínhamos um lado anarco-conservador, que irritava a esquerda, porque era conservador, e surpreendia a direita, porque era anarca." Vinte anos depois, Portas reconhece que O Independente, fez "coisas magníficas e coisas erradas", mas acha que se lhe deve conceder o mérito de ter "tirado a direita do gueto em que estava desde o PREC, tornando-a intelectualmente competitiva".

José Bourbon e João Viegas Soares, jornalistas do núcleo inicial do Independente, ambos são hoje administradores de empresas, dão um retrato unânime do Portas director de jornal. "Passei por algumas redacções e raramente vi alguém a fazer jornalismo com tanto gozo", diz Viegas Soares. Acrescenta que Portas gostava de "ser influente" e já "revelava o político" que veio a ser. Portas, conta ainda Viegas Soares, "passava 14 horas por dia no jornal", "estava sempre agarrado ao telefone, a falar com as suas fontes", "fazia sozinho metade do que saía na Política" e "sabia o que estava a ser feito em todas as secções".

Bourbon Ribeiro lembra que Portas "coleccionava pilhas de recortes de jornais estrangeiros", que ia distribuindo pelos jornalistas, e, tal como Viegas Soares, não compra a tese de que O Independente foi, desde o início, o trampolim de que Portas se serviu para lançar a sua carreira política. "Era um jornal de direita, mas o Paulo não encaixava nessa direita dos bigodes farfalhudos, e acho que só começou a ter um projecto de liderança política aí por 1994 ou 1995", diz Bourbon Ribeiro.

Viegas Soares, ainda hoje amigo tanto de Manuel Monteiro como de Portas, seguiu de perto "o desenrolar dessa relação", desde o tempo em que o segundo usava o jornal para promover a liderança do primeiro no CDS até ao momento em que decidiu tomá-la para si mesmo. "Conhecendo os dois, era um desenlace inevitável", conclui Viegas Soares.

A ruptura com Monteiro
Não era o único a pensar assim. Desde que Portas, nas eleições legislativas de 1995, se candidatara nas listas do CDS por Aveiro e fora eleito deputado, não havia jornal que não previsse que o mentor de Manuel Monteiro (dizia-se que fora ele que o convencera a acrescentar o "PP" de Partido Popular (e de Paulo Portas) à sigla original do CDS) iria acabar por lhe suceder na liderança do CDS.

O primeiro sinal tinha já sido dado no final de 1996, no XIV Congresso do CDS, em Coimbra, quando o discurso de Portas é muito mais ovacionado do que o de Monteiro e o líder do partido abandona a sala, tendo depois explicado que fora tomar um café. A relação entre ambos azeda e Portas chega ao congresso de Braga, em 1998, disposto a disputar o partido a Maria José Nogueira Pinto, a candidata apoiada por Manuel Monteiro, que se demitira após a derrota nas eleições autárquicas do ano anterior.

O primeiro subscritor da moção que o leva à presidência do CDS é o seu velho amigo Nobre Guedes, de quem Portas é padrinho de casamento, e que hoje não lhe fala.

O trajecto de Portas desde que se filia no CDS até tomar conta do partido é turbulento, mas previsível.

O momento decisivo é anterior. E não é um momento. É esse período em que o influente director de um jornal que, contra todas as expectativas, está a vender quase tanto como o Expresso começa a colocar a hipótese de o abandonar.

Luís Nobre Guedes lembra ao P2 que, no início do projecto, Marcelo Rebelo de Sousa o aconselhou a afastar-se, porque O Independente nunca venderia mais de 20 mil exemplares. E também se lembra que chegou a vender 127 mil. "Foi com a capa do Duarte Lima." Em rigor, uma das capas, já que, como outros ministros dos governos de Cavaco, as "vítimas" predilectas do jornal, Lima teve direito a uma boa meia dúzia de manchetes.

"Na semana em que saí", diz Portas, O Independente vendeu 107 mil exemplares. O jornal tinha apenas sete anos e era um sucesso.

O que o levou, então, a sair? Apenas dois anos antes, dissera publicamente no programa Parabéns de Herman: "Não quero ser político, não quero ser eleito para coisa nenhuma, não quero um tostão do Estado, não quero um tacho." O próprio Portas não sabe explicar ao certo o que o levou a trocar o jornalismo pela política partidária.

"Sempre me interessei por política, mas mudar de vida era outra coisa." Uma das explicações que avança é a de que o jornal estava a habituar os leitores "a ter, todas as semanas, boas histórias, que provocavam consequências". Uma dependência difícil de satisfazer. "Como não há boas histórias todas as semanas, é um facto melancólico, a certa altura comecei a ficar um bocadinho cansado." Mas esta é apenas parte da história. A outra Portas resume-a assim: "A partir de certa altura, nos anos 90, quando o Manuel Monteiro se torna presidente do CDS, deixei-me namorar pela ideia de dar o passo para a política; e depois passei eu a namorá-la, que é o que acontece quando nos deixamos namorar." E, prosseguindo na metáfora amorosa, conclui: "É um flirt, um processo não inteiramente consciente que a gente vai deixando progredir e que, depois, toma conta da nossa margem de manobra."

O Paulinho das feiras
E progrediu tanto que, pouco depois, em 1998, já é o líder do CDS. O momento é difícil. O seu envolvimento no caso Moderna, por via da empresa de sondagens Amostra, que geria para a universidade de Braga Gonçalves, andava nas capas dos jornais.

"Cheguei a ter 1% nas sondagens." Nunca foi constituído arguido, mas a polémica bastou para fazer abortar a tentativa de ressurreição da Alternativa Democrática (AD) que, em 1999, ensaia com o então líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa, com quem se reconciliara após um corte de relações motivado por uma alegada notícia falsa que este lhe soprara nos tempos do Independente. Portas nega qualquer envolvimento no processo da Moderna. "Não fui fundador, nem director, e não sou maçon, venho dos jesuítas." E diz que as acusações relativas à sua gestão da Amostra se reduziram, no final, "a um cheque de 250 euros" para o qual não tinha documentos justificativos.

Outro problema do CDS era a falta de dinheiro. "Não tínhamos um tostão e eu perguntei ao responsável pela campanha do partido onde poderia encontrar pessoas sem gastar dinheiro." Sugeriram-lhe os centros comerciais e as feiras. "E o Belmiro [de Azevedo] deixa fazer campanha nos centros comerciais?" Não deixava. "Então resolvi ir para as feiras, e acabei por tomar-lhe o gosto." Um dia, em Espinho, um feirante atirou-lhe: "Você já foi a mais feiras do que eu, você é o Paulinho das feiras." E a alcunha pegou.

Portas viria, de facto, a reeditar a AD, mas só em 2002, com Durão Barroso. É nomeado ministro de Estado e da Defesa. A principal polémica do seu mandato, o contrato de compra de dois submarinos ao consórcio alemão GSC, só estoura muito depois de ter deixado o cargo, por via de escutas telefónicas realizadas no âmbito do caso Portucale, este relacionado com um alegado abate ilegal de sobreiros, numa herdade de Benavente, para permitir a construção de um projecto imobiliário e turístico da empresa Portucale, do Grupo Espírito Santo (GES).

O contrato de contrapartidas acordado com os alemães deu origem a um processo que está a ser julgado em tribunal. Portas acha que "quem enganou o Estado português deve pagar", mas defende a opção que tomou. Lembra que o concurso de aquisição foi lançado em 1998, pelo Governo de António Guterres, e defende que, "como qualquer país com linha costeira, Portugal tem de ter submarinos".

Ainda durante o Governo de Durão Barroso, outra polémica chamusca indirectamente o líder do CDS. Quando estava em curso o julgamento da Moderna, Maria José Morgado é afastada pelo então director da Polícia Judiciária, Adelino Salvado, da direcção central de combate ao crime económico e financeiro. Morgado diz aos jornais que este teria sido pressionado pela ministra do CDS que tutelava a Justiça, Celeste Cardona.

O ministro pasmado
Quando Durão Barroso vai para Bruxelas, em 2004, e Santana Lopes se torna primeiro-ministro, Paulo Portas não tem dúvidas de que "o Governo estava a prazo". Diz que foi o momento da sua vida em que se sentiu mais dividido. "Achei que o contrato de confiança que as pessoas tinham estabelecido com aquela maioria tinha caducado e hesitei muito em pôr fim à coligação; a razão principal que me levou a ficar foi achar que o CDS ia ser injustamente responsabilizado pela queda do Governo." O seu segundo mandato ministerial começa com um episódio anedótico.

Quando, na cerimónia de tomada de posse, chega a sua vez e é anunciado que irá assumir a pasta da Defesa e dos Assuntos do Mar, faz uma expressão de pasmo absoluto. Quem assistiu, em directo ou pela televisão, convenceu-se de que Portas não fazia a menor ideia de que, a par da Defesa, iria também ficar responsável por essa novidade, aparentemente inventada por Santana Lopes, que eram os "assuntos do mar". A surpresa foi genuína, mas as razões eram outras, e quase inversas.

Durante um ano, Portas, tinha tentado convencer o primeiro-ministro a deixá-lo tutelar toda a política do mar, cujas competências estavam dispersas por vários ministérios. "Como não foi possível com Durão Barroso, quando ele saiu negociei com o Pedro Santana Lopes." E desta vez com sucesso.

Portas vai então dar conhecimento da decisão ao Presidente da República, Jorge Sampaio, que, afirma, concordou com as vantagens de uma política integrada, mas lhe deixou um aviso à navegação.

"Alertou-me para ter cuidado com o título a dar ao ministério, porque aquele 'assuntos do mar' ia criar a ideia, junto do Exército e da Força Aérea, que eu estava a privilegiar a Marinha." Portas explica o problema a Santana Lopes, frisando que se tratava de uma recomendação do Presidente, que era o chefe das Forças Armadas. "Ele disse-me que ficasse sossegado, e por isso é que faço aquele ar de pasmo quando ouço que vou ser ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar." Quando o Partido Socialista de Sócrates ganha as eleições, em 2005, e Portas abandona o Ministério da Defesa, leva para casa fotocópias de milhares de documentos.

Uma medida que não surpreende excessivamente, dado que já no Independente tinha a reputação de ser um arquivista compulsivo. A operação vem a ser detectada nas escutas do processo Portucale e cria polémica, mas conclui-se que o acervo não incluía quaisquer documentos classificados.

A zanga com Nobre Guedes
Bastante mais complexo é o caso Portucale propriamente dito, que envolveu três ministros do Governo de Santana Lopes - um do PSD, Costa Neves (Agricultura), e dois do CDS: Luís Nobre Guedes (Ambiente) e Telmo Correia (Turismo). Nenhum deles é arguido no processo que começou agora a ser julgado, mas foram eles que assinaram, a poucos dias das eleições legislativas de 2005, o despacho que reconhecia ao projecto da empresa Portucale "imprescindível utilidade pública", permitindo o abate de cerca de 2500 sobreiros. O despacho foi revogado pelo Governo de Sócrates, quando já tinham sido abatidas 900 árvores.

Um dos arguidos do processo é o ex-dirigente e responsável financeiro do CDS Abel Pinheiro, acusado de tráfico de influências e falsificação de documentos. Pinheiro já admitiu que meteu cunhas para acelerar o projecto, argumentando que "a cunha é uma instituição nacional", mas nega outras acusações.

Luís Nobre Guedes, que, depois de ter imposto várias alterações ao despacho, se orgulha de ter assinado a sua versão final, argumenta que se tratava de uma "região deprimida", que estava previsto que se plantassem sobreiros noutros locais, e que o projecto do GES garantia 2500 postos de trabalho na fase de construção e 750 permanentes".

Ainda antes de terminada a fase de inquérito, o Ministério Público ilibou Nobre Guedes, mas o ex-ministro não gostou de ver o seu nome andar nos jornais. "Como advogado, eu vivo da credibilidade que tenho, e não me era possível ter a vida profissional que voltei a ter se houvesse qualquer dúvida ética em relação à minha conduta", diz.

Portas, que também acha que, "em termos substantivos, e independentemente de eventuais irregularidades jurídicas", o projecto da Portucale era positivo para Benavente, explica que Nobre Guedes "considerou tão monstruosos os ataques de que estava a ser alvo que achou que o partido devia dar prioridade à sua defesa, mesmo que esgotasse as suas energias nesse esforço, em detrimento da sua agenda política".

Portas recusou e foi essa a raiz do afastamento entre ambos. Nobre Guedes confirma, no essencial, esta versão. "Estava-se a assistir a uma completa instrumentalização da Justiça, e achei que essa era uma questão nuclear de que os partidos não se podiam alhear", diz o advogado. "O dr. Paulo Portas achou que não, que não era importante." Nobre Guedes demite-se então da direcção do CDS, magoado com o amigo. "Eu não tive o mesmo comportamento quando se deu o caso da Moderna, e não me arrependo: acho que quando somos ofendidos na nossa honra, devemos esperar os nossos amigos se solidarizem connosco." Mas não foi ainda neste momento que cortou formalmente relações com Paulo Portas, o que só acontecerá na sequência do último congresso do CDS, quando, por presumível influência do líder do partido, é impedido de comparecer como delegado. "Acharam que eu seria uma voz incómoda e que o melhor era calar essa voz." Mas vai estar presente no próximo congresso, já em Março, e tenciona intervir. "Só tenho três minutos, vou ter de ser muito sintético, e não vou lá, com certeza, para ser o rosto da oposição, porque, se fosse para isso, candidatava-me." Na verdade, não se entrevê nenhum "rosto da oposição" disponível para disputar o lugar a Paulo Portas, e a sua longevidade na liderança do CDS parece razoavelmente assegurada. Desde que chegou à presidência do partido em 1998, só não foi líder num curto interregno. Demitiu-se em 2005, quando não obteve os 10% que tinha pedido na campanha para as legislativas, tendo-lhe sucedido Ribeiro e Castro. Decidiu-se a regressar em 2007 e, em eleições directas, venceu o mesmo Ribeiro e Castro com 75% dos votos.

O único que, neste momento, não parece ver como um dado necessariamente adquirido que Portas está para lavar e durar como líder do CDS é o próprio Portas. "Fazer previsões na política portuguesa é um grande atrevimento, os politólogos enganam-se mais do que as senhoras da meteorologia." Já para não falar, claro, que tem um romance e um argumento para escrever e pode apetecer-lhe ir tirar Arquitectura.
 
 
 

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