Os dois governos
António Costa fica à mercê de um corpo estranho que ele próprio instalou na sua maioria, insensível a qualquer argumento que venha de fora ou a qualquer tipo de sedução.
Depois dos temores do professor Vítor Bento, ninguém se deu ainda ao trabalho de examinar o que resta hoje do partido de Álvaro Cunhal, que sempre seguiu, dentro das suas fracas forças, a ortodoxia da Internacional ou, se quiserem, da Igreja Comunista. Nesta última crise, nunca se tocou em alguns pontos que, no entanto, são essenciais. Um deles é o chamado “centralismo democrático”. Quando se discutia a ilegitimidade da “frente de esquerda” ou a “legitimidade” da coligação CDS-PSD, em nenhuma das gritarias que por aí houve se mencionou o facto de o PC continuar solidamente a ser um partido antidemocrático, em que os dirigentes superiores decidem e determinam tudo, desde o pessoal ao que dizer em cada altura e em cada lugar. Se o PS existe, se todo o socialismo existe, é por terem recusado esta espécie de tirania.
Não vale a pena fazer aqui a longa lista da gente que saiu do partido por não conseguir aguentar a vida de caserna que ele universalmente impunha e os métodos policiais com que vigiava os seus vários suspeitos de indisciplina ou dissidência. Mas vale a pena registar para memória futura que o PS procurou e, mais do que isso, aceitou depender de uma máquina que só dura hoje em Portugal e que é sem dúvida uma das piores aberrações do século XX. António Costa insistiu na “democratização” dos socialistas (ou seja, nas “primárias”) para remover Seguro e se instalar ele no cobiçado assento de secretário-geral. Infelizmente os resultados 4 de Outubro apagaram esses compromissos, que se julgavam sérios, para permitir uma aliança torpe e o levar depressa a primeiro-ministro, dignificando de caminho um método político, o “centralismo democrático”, que matou milhões.
Mas, tarde ou cedo, Costa pagará esse erro infame. Está agora suspenso das lutas da meia dúzia de potentados que mandam no PC. Nem ele pode por puro desconhecimento intervir nelas, nem se pudesse o deixariam intervir. Fica assim à mercê de um corpo estranho que ele próprio instalou na sua maioria, insensível a qualquer argumento que venha de fora ou a qualquer tipo de sedução. Não há em última análise um governo socialista. O que há são dois governos sob a estranha designação de “maioria”: um do PS, sem força própria para se sustentar, e outro do PC, que estará quieto e cooperante, enquanto lhe derem o que ele pedir (conste ou não conste o que ele pedir das ridículas “posições conjuntas” que por formalidade assinou). Costa e a sua gente vão aprender muito nos próximos meses.