“O último herdeiro da República dos professores”
Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa, anunciou esta quarta-feira a sua candidatura a Belém. Soares e Sampaio ouviram-no apresentar a sua ausência de cartão partidário como a “diferença” da sua campanha.
O fim do princípio de uma candidatura política fechou-se esta quarta-feira, no Teatro da Trindade, com a voz-off que antecedeu o discurso do antigo reitor citando esse “primeiro dia do resto” do caminho para Belém.
Com o seu “discurso clássico”, de oposição a “esta abordagem radical da austeridade”, Sampaio da Nóvoa iniciava assim o percurso que se confirmava no Teatro da Trindade, com o seu anúncio de candidatura à Presidência da República. Pelo meio foi coleccionando ovações nos mais variados palcos políticos. Na Aula Magna onde Mário Soares arregimentou a esquerda contra a direita, no último Congresso do PS onde propôs uma “democracia democrática” e no Congresso da Cidadania, da Associação 25 de Abril, onde defendeu ser “preciso acabar" com a política de austeridade "antes que ela acabe" com os portugueses.
Mas já em 2012, no longo discurso do dia de Portugal, estava impressa a sua marca e ao que vinha. “O heroísmo a que somos chamados é, hoje, o heroísmo das coisas básicas e simples – oportunidades, emprego, segurança, liberdade. O heroísmo de um país normal, assente no trabalho e no ensino.” Uma retórica assertiva que foi galvanizando alguma da esquerda revoltada com as políticas do governo de direita e a postura de Cavaco Silva. Foi Cavaco Silva o primeiro responsável e um dos primeiros a testemunhar a retórica do antigo reitor. “Ou nos salvamos a nós, ou ninguém nos salva”, citou numa intervenção crítica que haveria de repetir ao longo dos últimos dois anos.
O PÚBLICO desafiou dois académicos universitários, habituados a estudar a política, a desvendar Sampaio da Nóvoa. “É o homem do discurso clássico”, responde José Adelino Maltez, antes colar o antigo reitor a uma certa classe. “Ele é o último herdeiro da República dos professores”, essa forma “clássica” de pertencer à esfera política, mais habitual “talvez em França”. Onde, apesar de tudo, essa casta se mostra ainda disponível para se submeter aos escrutínio público.
Maltez não concorda com quem vê em Sampaio da Nóvoa uma página em branco que só agora se começa a preencher com discursos inflamantes. “Ele tem um percurso e não se pode pedir mais”, afiança antes de lembrar que o agora candidato “foi um dos actores fundamentais da fusão da universidades Clássica e Técnica” de Lisboa.
“Há um lastro de tomadas de posição”, corrobora André Freire, depois de recordar os anos entre 2006 e 2013, quando esteve na reitoria. “Aí, ele deu provas de grande autonomia e coragem política”, afirma o professor de Ciência Política. Repescando esses anos em que o ministro Mariano Gago avançou com “cortes no ensino superior” para apostar na Ciência. “Insurgiu-se contra o ministro, ficando até isolado no Conselho de Reitores”. Isto com um Governo que até era da sua esfera. “As afinidades com o PS não são de agora”, alerta Freire, lembrando o cargo de conselheiro para a Educação de Jorge Sampaio.
Mas André Freire reconhece um “handicap” ao arranque da corrida de Nóvoa. “Se a gente perguntar em Bragança ou em Beja, ninguém sabe quem ele é”, alerta. “Ele não é conhecido, exceptuando nos círculos urbanos e universitários”, acrescenta. “Para vingar, precisa de começar a fazer campanha já, ir a todas as frentes”, remata. Fazer as inevitáveis “voltas ao país, ir para os media, entrar nas redes sociais”, concretiza.
Também Maltez reconhece que falta ao antigo reitor atravessar o seu “Rubicão”, aquela “barreira terrível que é a comunicação”. “Ainda não o experimentámos como homem da comunicação” para se saber se “ainda se admite uma República de professores”.
A “vantagem” de Sampaio da Nóvoa é que não é apenas um “professor”. “Até jogava matraquilhos, futebol e correu o mundo”, recordou o ex-director do Centro de Estudos do Pensamento Político do ISCSP. Foi a jogar a médio pela Académica que chega à Universidade de Coimbra. O curso de Medicina fica, entretanto, para trás. O gosto pelos palcos teatrais empurra-o para o Conservatório de Lisboa. E o prazer das aulas, de expressão dramática durante dois anos em Aveiro, trouxeram-no de nova à Academia para finalmente se dedicar àquela que seria a sua área: a Educação. O “mundo” que percorreu foi para dar substrato a essa formação. Doutorou-se em Genebra e Paris antes de regressar em Lisboa. O seu globo alargou-se com o Brasil, onde até há pouco, foi consultor da Unesco, precisamente na área da Educação.
É essa a arma que arremessa constantemente nos seus recentes discursos políticos. Desde 10 10 de Junho de 2012: “O drama de Portugal tem sido sempre, mas sempre, o afastamento de sociedades que evoluíram graças ao conhecimento e à ciência”. A sua outra marca que flui dos palanques é a insistência na “mudança”, ou não fosse o ex-reitor um confesso “admirador” de Bob Dylan, autor de The times are changing. No Congresso do PS, em Novembro de 2014, mostrou-se “disposto a tudo” sem pretender “nada” para si, com essa mesma condição. Há dias reiterou-o no Congresso da Cidadania: “Pronto a morrer pela liberdade” mas apenas “se for para abrir um tempo de mudança”. Com urgência, asseverava, porque ou “será em 2015 ou não será por muito tempo”.
Houve uns que viram no termo um jargão vazio de contestação à austeridade. “Ilustre desconhecido”, concluiu Marques Mendes, um dos comentadores políticos reformado das lides. E, no entanto, no 10 de Junho de 2012 já traçava a sua linha e a sua herança, citando Franklin D. Roosevelt: “A democracia funda-se em coisas básicas e simples: igualdade de oportunidades; emprego para os que podem trabalhar; segurança para os que dela necessitam; fim dos privilégios para poucos; preservação das liberdades para todos.” Também não se escusou nos escaldantes dossiers que queimam as línguas da liderança socialista. Sampaio da Nóvoa, já depois de sucessivos líderes do PS (como o presidente Carlos César) terem sinalizado o seu apoio, ousou falar na expressão maldita ligada à dívida. "Temos de renegociar a dívida e resolve-la honradamente. O nosso problema é económico e não financeiro", disse no Congresso da Cidadania.
Foi por isso que o seu provável adversário na futura lide, o mediático Marcelo Rebelo de Sousa, disse que com Nóvoa, o PS poderia “fazer um dois em um”: “Pode ajudar António Costa a tentar ir buscar a uma esquerda que o rodeia mais uns por centos na luta contra o centro-direita.”
É a “formula ideal”, resume André Freire, a de apresentar “um candidato de extracção não partidária, mas sem prescindir do apoio financeiro e capacidade de mobilização da máquina de um grande partido”. Resta saber se Sampaio resistirá ao jogo duro da política, tão distante da praxis da “república dos professores”. Afinal, numa entrevista em 2010, ainda antes do seu nascimento político, o próprio reconhecera não gostar desse “ambiente”. “O único cargo onde poderia ter tido algum poder, mas foi um cargo de que gostei muito pouco, foi o de consultor do Presidente da República, do Dr. Jorge Sampaio. Não gostei daquele ambiente.”
Nóvoa cola-se às vitórias socialistas
Muitos socialistas à vista, mas sem Bloco ou PCP. O anúncio da candidatura de Sampaio da Nóvoa a Belém ficou esta quarta-feira marcada pela aproximação à esfera socialista. Dois ex-Presidentes da República socialistas (Mário Soares e Jorge Sampaio) mais alguns antigos ministros (João Cravinho, Mário Lino e Jorge Lacão) e autarcas como Duarte Cordeiro, compareceram no Chiado para ouvir o professor universitário comparar a sua futura campanha a outras batalhas. “Doutor Mário Soares, em 1986 foi difícil mas foi possível, doutor Jorge Sampaio, em 1996 foi difícil mas foi possível. Em 2016 também será difícil, mas também será possível”, disse Sampaio da Nóvoa no arranque de uma intervenção que ensaiou a demarcação à Presidência de Cavaco Silva e a crítica ao Governo de Passos Coelho. A demarcação a Cavaco ia sendo feita com referências subtis. Prometeu não ser “um espectador impávido da degradação da nossa vida pública”. Prometeu atenção às Forças Armadas “não abdicando da palavra que Presidente” tinha na “mobilização para missões no estrangeiro”. Garantiu trabalho para “celebrar pactos de mudança e não de resignação”, não querendo “ser Presidente de apenas alguns portugueses”.
Depois de prometer empenho na luta para não “perder o país que conseguimos levantar nas ultimas décadas”, Sampaio da Nóvoa ensaiou a “diferença” da sua candidatura. Apesar do compromisso contra a “destruição do Estado Social”, assegurou que pretendia “dar corpo a dinâmicas” que iam “além das dicotomias tradicionais esquerda/direita”. E para isso assumiu não ter “filiação partidária” e garantiu não ter exercido “cargos políticos no sentido estrito”.