O túnel

Os desafios da renovação do Estado Social em período de vacas magras são enormes. Mas o pior seria deixar correr.

Ao contrário do que deveria acontecer, a campanha não se travou entre o governo e as oposições, mas entre o PS, praticamente só nesse combate e governo mais oposições, unidos contra o PS, como há três anos. Como se estes três anos tivessem sido um túnel em que nada aconteceu. Atacou-se o PS de Sócrates como se fosse governo e, ao sair do túnel, vai-se atacar o PS como se já tivesse voltado ao Governo. Os Portugueses não mereciam esta desastrosa campanha.

Qualquer que seja a data decidida pelo Presidente para as legislativas, seja o termo do mandato parlamentar, isto é daqui a 16 meses, seja antes, temos que pensar na reconstrução. Acima de todos o Presidente, sobre quem impenderá a responsabilidade da escolha entre deixar correr prazos e crescer o bloqueio nos 20 meses que lhe faltam de mandato ou, pelo contrário, tomar a iniciativa política que deixou definitivamente de existir neste Governo. A crise pode ser atingida por uma paragem na recuperação económica, ou por uma decisão do Tribunal Constitucional a qual, recusando alguma da austeridade do Orçamento de 2014, denunciaria o erro presidencial pela ausência de acção em tempo útil. Tendo, todavia, a vantagem de ajudar a relançar o consumo e o produto, como aconteceu em 2013. Há que reconstruir a economia, roída ao osso, também pela quebra das exportações, hoje documentada e pela falta de crédito e de confiança. É a altura para recuperarmos reformas necessárias e encetarmos outras, que a actual maioria, por pusilanimidade, cobardia ou simples oportunismo, desistiu de prosseguir.

Teremos que regressar a duas áreas maltratadas, até na linguagem: a chamada “reforma do estado” e a “reforma” do Estado Social. O Governo tem usado o eufemismo da primeira para mascarar a sua incapacidade política: onde está a redução do número de municípios? Onde pára a famosa fusão de ministérios e simplificação da macroestrutura? Onde ficou a redução de despesas dos gabinetes em assessores e consultorias? Onde pára a desconcentração da administração central? Onde estamos em matéria de formação do pessoal dirigente e médio da administração? Onde ficámos na desmaterialização e desburocratização? Qual a real reforma realizada nas empresas públicas de transporte urbano? Conseguimos tornar os portos mais eficientes? Que fizemos aos projectos de linhas férreas transfronteiriças? Teremos hoje justiça mais célere, mais acessível e menos dispendiosa?

As respostas são pífias ou sinistras, em alguns casos. A redução do número de municípios não lentou voo, foi substituída pela das freguesias, alvo mais frágil. A fusão de ministérios caiu com o desaparecimento do cometa canadiano e a comprovação material do disparate. A redução da despesa dos gabinetes ficou pela classe económica dos ministros nos voos europeus. De assessores e consultorias, vamos reconhecendo a juventude dos recrutados, o seu débil passado técnico, e a sua ostensiva remuneração. A administração central desconcentrada perdeu poderes: na educação foram retiradas responsabilidades aos órgãos regionais, na saúde o método passou pela nomeação de medíocres, com raras excepções, na segurança social recorreu-se a uma sementeira de jovens CDS, em regime de coutada. O nível regional serve hoje apenas para oferecer nomeações partidárias, e garantir “confiança política”, ou seja, fidelidade, em vez de lealdade e competência. A formação de pessoal desapareceu por falta de meios e pela emasculação do INA. As lojas do cidadão, colocadas no limbo político, vão encerrando aos poucos, apesar de retórica recuperação de Poiares Maduro, vindo a terminar com uma prometida transformação de estações de correios em clones daquelas. Nos transportes urbanos conhece-se a concentração da estrutura governativa, os aumentos de preço ao público em altura de arrocho financeiro e a desconfiança quanto à transferência para os municípios, com medo da popularidade de António Costa em Lisboa. Nos portos, o anedotário prossegue com o cais de contentores, oscilando entre a Trafaria e o Barreiro, exigindo dragagens ciclópicas. E finalmente, quanto à justiça, enquanto na saúde se concentraram maternidades e urgências por razões de qualidade, ainda não vi tal argumento ser aduzido como razão para encerrar tribunais. Apenas cortes na despesa.

E temos finalmente, a “reforma” do Estado Social. Dela constam a redução dos ordenados da função pública, o corte brutal nas pensões, o aumento da lotação das turmas escolares - paralelo ao desemprego de professores - a expulsão do inglês, a concentração decisória em Lisboa, a constante mudança de programas, a paralisia do superior e da ciência cortando nas dotações e nas bolsas, o apertar do abono de família e do complemento social para idosos, o enorme aumento de impostos e pasme-se, o aumento das pensões sociais não contributivas, em euros que se contam pelos dedos da mão. Os patrões aceitam o salário mínimo de 500 euros, mas o governo só o consentirá nas vésperas das próximas eleições. Reconhecemos a redução dos orçamentos de hospitais empurrando-os para endividamento por ausência de liberdade de decisão e de autogoverno responsável e agora até vemos um tique autoritário de censura, recorrente sempre que governos estão cansados e se sentem maltratados pela opinião pública.

Os desafios da reconstrução são complexos: além dos substantivos, preexistentes, vamos ter a correcção dos erros de governação, em muitos casos agravando a factura financeira, como no retomar das obras paralisadas por demagogia.

Os desafios da renovação do Estado Social em período de vacas magras são enormes. Mas o pior seria deixar correr. Um futuro governo tem obrigações imensas, atravessam pântanos e florestas perigosas, mas são irrecusáveis. Implicam agudeza no diagnóstico, objectividade na crítica, medição das necessidades e recursos, rejeição dura da demagogia, mas também equilíbrio nas medidas, compaixão na escolha dos beneficiários, capacidade de gerar autonomia para, percorrido o túnel, cada um cooperar na saída da crise. Reconheceremos, provavelmente, que o incipiente estado social a que só tardiamente acedemos não pode manter as suas ineficiências. Teremos que assentar a distribuição de benefícios em contrapartidas dos cidadãos que aumentem a cidadania em vez da dependência. Que estudar alternativas e optar pelas de mais elevada razão entre benefícios e custos. Que escalar no tempo cada benefício, tanto para a concessão como para a retracção, quando seja necessária. Que obter de cada euro a mais o máximo possível de progresso social e de energia para o elevador social. Que não tenhamos medo de usar a palavra compaixão, sempre que a dor individual supere a igualdade distributiva. Há um enorme trabalho à nossa frente. O tempo escasseia, por tudo estar pior que há três anos atrás. Percorrido o túnel, haverá agora que vencer caminho.

Deputado do PS ao Parlamento Europeu

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