O sentido do voto em eleições parlamentares
Diferentemente do aduzido por Rousseau, o povo vota para poder ser livre e como meio privilegiado de fazer efectivar a responsabilidade política dos governantes lato sensu.
A bem do esclarecimento cívico da opinião pública sobre as consequências jurídicas, há que elucidar o seguinte [tomamos como exemplo as eleições legislativas internas nacionais; sendo várias das suas regras aplicáveis às eleições para o Parlamento Europeu (v. artigo 12.º, n.º 1 da Lei Eleitoral para o Parlamento Europeu) e às eleições para as Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira, sem prejuízo de, nestas, haver um círculo eleitoral único, constituído pelo território nacional ou pelo território português da região autónoma, respectivamente]:
1. Juridicamente, as eleições legislativas servem para eleger Deputados, em cada círculo eleitoral, para a Assembleia da República (AR).
Elas não servem para “eleger” o Primeiro-Ministro (que, como se sabe, é nomeado — e não “eleito” — pelo Presidente da República (PR), de acordo com os resultados eleitorais, ouvidos os partidos com assento parlamentar (art.º 187.º, n.º 1, da Constituição (CRP)) (embora se reconheça a personalização e o fenómeno fáctico dos chamados “candidatos a Primeiro-Ministro”, esta figura não existe na CRP; e nem sempre é verdade que o partido mais votado forme Governo; basta existir uma maioria de partidos com um acordo pré-eleitoral de coligação).
As eleições europeias servem para eleger Deputados ao Parlamento Europeu (embora o voto possa ser exercido com outros intuitos e possa ter consequências na vida interna dos partidos).
2. De Direito e como conselho, caros cidadãos: não se abstenham!
O voto é "um direito e um dever cívico" (art. 81.º, n. 1, da Lei Eleitoral da AR).
O silêncio, em Direito, não tem significado (ao contrário do que o ditado "Qui cala consens" refere): não quer dizer necessariamente repulsa nem apoio.
A abstenção é uma má solução; pois implica o não exercício do direito de voto e uma violação do dever cívico de votar. A abstenção é uma falta de comparência. Não ficam lugares vazios no Parlamento devido à abstenção. É preferível sempre votar.
3. Entre os votos possíveis, há três: i) o voto em lista; ii) o voto em branco; iii) o voto nulo.
O voto em branco é considerado “o do boletim de voto que não tenha sido objecto de qualquer tipo de marca.” (art. 98.º, n. 1, da Lei Eleitoral da AR, em http://www.cne.pt/content/legislacao-eleitoral).
O voto nulo é considerado nas seguintes situações:
“a) No qual tenha sido assinalado mais de um quadrado ou quando haja dúvidas sobre qual o quadrado assinalado;
b) No qual tenha sido assinalado o quadrado correspondente a uma lista que tenha desistido das eleições ou que não tenha sido admitida;
c) No qual tenha sido feito qualquer corte, desenho ou rasura ou quando tenha sido escrita qualquer palavra” (art. 98.º, n. 2, da Lei Eleitoral da AR).
Com o devido respeito, quem conhecer as regras eleitorais não pode concordar com o voto em branco ou com o voto nulo. Apesar de serem uma forma respeitável, simbólica e mesmo de protesto, exercendo o direito de sufrágio, o voto nulo ou o em branco são, porém, ineficazes na prática.
Porquê? Passamos a explicar.
É verdade que os votos em branco e nulos são contabilizados (v. art. 102.º, n. 7).
Porém, são à partida separados dos restantes votos: veja-se o art. 102.º, n.º 1, da Lei Eleitoral da AR, a respeito da “Contagem dos votos”:
"1 — Um dos escrutinadores desdobra os boletins, um a um, e anuncia em voz alta qual a lista votada. O outro escrutinador regista numa folha branca ou, de preferência, num quadro bem visível, e separadamente, os votos atribuídos a cada lista, os votos em branco e os votos nulos.”
O art. 103.º regula o destino dos boletins de voto nulos: “Os boletins de voto nulos (…) são, depois de rubricados, remetidos à assembleia de apuramento geral, com os documentos que lhes digam respeito.”
Isto significa que o voto nulo e o voto em branco nem sequer são englobados na percentagem, não contam em termos de eleger ou impedir a eleição de nenhum candidato: i) o voto nulo não elege ninguém: não ficam cadeiras vazias no Parlamento; ii) o voto em branco não impede a eleição de ninguém.
Veja-se o art. 16.º da Lei Eleitoral para a AR: “A conversão dos votos em mandatos faz-se de acordo com o método de representação proporcional [cfr. art. 113.º, n.º 4, da Constituição] de Hondt, obedecendo às seguintes regras:
a) Apura-se em separado o número de votos recebidos por cada lista no círculo eleitoral respectivo.”
Não se nega que votar branco ou votar nulo seja legítimo em termos de exercício do direito de voto.
Porém, não tem quaisquer consequências em termos eleitorais, senão demonstrar à opinião pública, por parte desses votantes, desagrado (associado ao voto nulo) ou, em alternativa, que qualquer candidato serve (associado porventura ao voto em branco).
4. Em suma, é preferível ir votar. Qual a melhor opção?
Cada um fará o que entender, naturalmente. Porém, na nossa maneira de ver, em termos de eficácia, é preferível escolher votar num partido/lista, pois isso diminui a percentagem, em cada círculo eleitoral, da percentagem dos restantes partidos; e contribui para dificultar a eleição de cada Deputado (que é feita de acordo com o sistema de representação proporcional, utilizando o método da média mais alta de Hondt).
O preferível é votar numa lista ou num outro partido, pois isso faz baixar a percentagem dos restantes partidos.
E, para aqueles que não escolheram nenhum dos cinco partidos/listas com assento parlamentar a votar, é preferível votar num partido ou numa lista, para entrar na percentagem e fazer baixar a votação dos principais partidos ou listas. Há muitos partidos; há muita diversidade por onde escolher.
5. Em relação a quem discorda de algum assunto — por exemplo, dissente do malfadado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) —, o melhor caminho para expressar o protesto em relação ao mesmo passa, não por um voto nulo (ou em branco), mas sim (caso haja alguma escrita em “acordês” ou para expressar em geral o desacordo em relação à “aplicação” do AO90) por um protesto, que poderá ser exercido aquando do exercício do direito de voto — veja-se o artigo 99.º da Lei Eleitoral da AR, sobre “reclamações, protestos e contraprotestos”.
"1 — Qualquer eleitor inscrito na assembleia de voto (…) pode (…) apresentar por escrito reclamação, protesto ou contraprotesto relativos às operações eleitorais da mesma assembleia e instruí-los com os documentos convenientes.
2 — A mesa não pode negar-se a receber as reclamações, os protestos e os contraprotestos, devendo rubricá-los e apensá-los às actas.”
6. A democracia representativa — teorizada por Marsílio de Pádua, Locke, Kant, Montesquieu, e depois desenvolvida por Alexis de Tocqueville ou Stuart Mill — implica que o povo é o titular da soberania, mas não a exerce constantemente: elege os seus representantes para gerir os negócios públicos.
Os mecanismos de democracia directa provaram historicamente que não são eficazes (no caso português, em três referendos nacionais, nenhum deles obteve mais de 50% de participação, não sendo, consequentemente, vinculativo).
Trata-se de uma vitória que deu razão a Montesquieu, em detrimento das ideias de Jean-Jacques Rousseau (que teorizou um sistema baseado nos cantões suíços).
De resto, o próprio Rousseau admitiu que o seu sistema de democracia directa não funcionava bem em Estados com povo e território numericamente significativos.
A má experiência dos sistemas cesaristas, plebiscitários, conduziu a Constituições semânticas, que não limitam nem distribuem o poder (como as de Napoleão, em França; e a portuguesa de 1933).
O berço da democracia moderna foi em Atenas, nos moldes de democracia directa, mas na qual apenas 10% da população era chamada a participar.
Desde o século XIX, e, depois, com o alargamento dos titulares do direito de voto, hoje, sem prejuízo de considerarmos que o sistema partidário deve ser reformulado, há que aceitar os postulados da democracia representativa. Diferentemente do aduzido por Rousseau, o povo vota para poder ser livre e como meio privilegiado de fazer efectivar a responsabilidade política dos governantes “lato sensu”.
Jurista