O PS e a esquerda (III)

O PS comporta-se como se nada tivesse a ver com a degradação social em que vivemos desde 2002.

Parece mas não é. Parece o que o PS diz sobre os últimos três anos de governo Passos/Portas, mas não: isto é o que o PS dizia, no capítulo “Falar verdade sobre a situação atual”, das suas Bases Programáticas para as eleições de 2005. Dez anos, 600 mil desempregados e 500 mil novos emigrantes depois, o PS está no mesmo sítio. E comporta-se como se nada tivesse a ver com a degradação social em que vivemos desde 2002. É o que tem o rotativismo: é todo ele feito de reencenação, de pedir que se confie uma e outra vez, que se substitua um dos parceiros do baile da rotação pelo outro, não sem antes se esquecer o que ele havia feito e dito antes da última voltinha de dança... Um inspire-expire-inspire-expire-esquerda-direita que se pretende fazer passar por uma democracia saudável.

Não me quero meter em nenhuma adivinhação voluntarista sobre o que fará António Costa quando ganhar as eleições. Quero, insisto, voltar à história, isto é, comparar o que o PS diz hoje com o que disse no passado perante situações semelhantes, e o que disse e prometeu com o que fez. Porque é o que podemos fazer. E regresso ao tema apenas porque André Freire (AF) comentou as minhas duas crónicas sobre a relação do PS com a esquerda, recordando-me que, a não ser que eu “queira 'mudar de povo'”, a única forma de constituir um “governo de esquerda em Portugal, no cenário atual”, é com o PS (in PÚBLICO, 24.12.2014). Não quero, nunca quis, “mudar de povo” mas, seguramente como o meu amigo AF, sei bem que os eleitores podem ser massivamente enganados. Nem que seja pela sua irrenunciável vontade de acreditar que agora é que é! O que peço é um pouco de sustentação histórica, e política, a todos os que pedem ao milhão de eleitores de esquerda que não confiam no PS que dêem o voto a quem quer confiar no PS.

Pode-se especular o que se quiser sobre o PS/2015. Pelo que se pode achar até que “a estratégia de Costa” para “recusar, com firmeza e clareza” onde?, quando? , “as políticas radicalmente neoliberais dos atuais detentores do poder [é] a mais adequada”. Mas o que se pode é investigar o que fez o PS/2005-11 (de Sócrates mas também de Costa, que é tudo menos uma novidade) e o PS/1983-85 (do Bloco Central) isto é, sempre que substituiu no poder a direita em fases de recessão económica.

Em 2005, como em 1983, a dívida pública crescia. O que fez o PS? Em ambos os casos, disse nos seus programas eleitorais que a dívida se pagava com crescimento económico, e, ao contrário do que pretende quem agora se propõe coligar com o PS, nunca prometeu renegociar coisa alguma. Em 2005, depois de cedido o essencial da soberania económica a quem mandasse na eurozona, Sócrates (e Costa) prometeu “empenhar-se ativamente no processo de revisão do Pacto europeu de Estabilidade e Crescimento” assinado em 1997 por Guterres, mas sem pôr em causa os “referenciais de 3% para o défice e 60% para a dívida pública”. Viu-se: Sócrates foi de PEC em PEC nacional até negociar o memorando com a troika; nada reviu, nem tentou rever. Em 2005, o PS prometia “um programa plurianual de redução da despesa corrente” de “modernização e racionalização da administração pública”. Também se viu: o que dali resultou foram dezenas de milhares de aposentações apressadas da administração pública, com penalizações que nem na letra miudinha do programa eleitoral haviam aparecido, a redução a pó de décadas de esforço para dar escolas e centros de saúde às comunidades do interior, ou os primeiros cortes que em todo o período democrático se fizeram nos salários nominais dos funcionários públicos.

Em 1983, o PS apresentou-se às eleições com 100 medidas para 100 dias, garantindo querer dar “mais estabilidade aos jovens” e “defender os direitos de quem trabalha”. Chegado ao poder com o PSD, o PS negociaria com o FMI mais dívida do que aquela que já havia, e Soares daria carta branca a um dos primeiros liberalões das Finanças, Ernâni Lopes (depois de já ter tido Medina Carreira no seu primeiro governo, 1976-78). Abriu-se caminho para o lay-off e o trabalho não remunerado, empurrando para a emigração ou lançando na miséria centenas de milhares de pessoas, e tudo para que o Estado pudesse pagar a dívida... Em todos os casos, o PS (exatamente como a direita) nunca hesitou quando teve de fazer escolhas entre pagar os juros da dívida sem pôr em causa o rendimento dos mais ricos ou preservar os direitos e as legítimas expectativas dos económica e socialmente mais frágeis. Foi a estes que exigiu sempre que arcassem com os custos da dívida, em nome da futura integração europeia (em 1983-85) ou da manutenção no euro (2005-11). Bem pode AF recordar os “contributos fundamentais do PS (...) para a construção do Estado social que temos”; precisa é de não esquecer que o mesmo PS nunca duvidou em pô-lo em causa para poder cumprir o que o FMI e/ou a UE impuseram/õem. Perante a evidente perceção de que estas políticas punham em causa a democracia económica que dizia em 1975-76 querer construir, o PS fez sempre as mesmas escolhas: uma certa Europa em vez da Constituição, uma certa modernização liberal em vez dos mais básicos direitos sociais, os juros da dívida em vez de um mínimo de dignidade humana.

Sem sequer prometer nada em contrário, porque havemos de esperar que o PS mude as suas escolhas em 2015? Porque elas estão aí, as escolhas que temos todos de fazer. Confiar ou não confiar no PS, por exemplo. Eu, por exemplo, já escolhi.

Historiador

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