O PS e a esquerda (II)
As opções de fundo do PS estão inscritas na sua história. Partido do poder, deixa-se atrair por todos os poderes (os económicos, os internacionais) – e por isso os julgará imbatíveis.
Volto à tese que apresentei na minha última crónica: aqueles que repetem que é por culpa do PCP e do BE que o milhão de portugueses que votam à esquerda do PS não contribuem para uma alternativa de governo cometem um erro central de análise histórica (e política) porque partem do princípio que o PS é um partido de esquerda conjunturalmente obrigado a governar à direita. Na verdade, o PS comportou-se sempre, nos últimos 40 anos, como uma força do campo social-liberal: com políticas económicas liberais, tomando o partido dos empregadores e do capital contra o trabalho, porque os julga os motores do desenvolvimento e os verdadeiros produtores da riqueza; social apenas quando o crescimento/acumulação da riqueza daqueles permita gastar um pouco com aqueles a que Passos chama “o mexilhão”.
O PS não é um partido socialista como os outros. Ele é, em Portugal, o herdeiro histórico mais próximo do reformismo republicano. O seu coração bate mais depressa pelo 5 de Outubro do que pelo 25 de Abril. Nascido entre advogados, médicos e intelectuais cuja coragem pessoal contra a ditadura é inegável, o PS não nasceu historicamente no mundo do trabalho, ao contrário da maioria dos seus congéneres europeus, onde movimentos sindicais reformistas mas minimamente enraizados no operariado e nos trabalhadores politizados dos serviços deram origem a partidos sociais-democratas. González, Craxi, Blair, Schröder, ou hoje Valls ou Renzi (que nem social-democrata se considera...) não pretendem/ram representar mais do que uma classe média qualificada e ambiciosa, em grande parte inventada na cabeça deles, mas, até aos anos 60, sindicatos reformistas, por mais anticomunistas que fossem, representavam milhões de assalariados que exigiam políticas redistributivas e serviços públicos que assegurassem uma melhoria consistente do bem-estar da grande maioria da população. Tudo isso foi abandonado nos anos 80. Acabavam de ser afastados do poder por Thatcher ou Kohl (e Reagan) e acharam rapidamente que a única forma de regressar era imitá-los. Se o “socialismo” foi metido na gaveta nos anos 70, o Estado de Bem-Estar passou a ser descrito pela social-democracia como impraticável em tempos de “globalização”. Em sociedades crescentemente injustas – e por culpa tanto dos governos socialistas quanto dos da direita –, é-lhes, contudo, muito difícil assumir que deixaram de acreditar na justiça social. Mas dessa, lembremo-nos, até Passos Coelho fala...
O PS governou 16 anos este país. Primeiro lutando contra a Revolução a partir de dentro: em 1975, aceitando a nacionalização dos setores económicos essenciais e a socialização do latifúndio – para, logo em 1976, começar a reverter ambas. O PS queria, claro que sim, a liberdade, a democracia política e uma descolonização – mas detestou a Revolução, que, como a direita, achava ser obra de Moscovo, recusando-se a ver como era genuína a esperança que os portugueses punham no seu empenho criativo em mudar a sua vida. Quando chegou sozinho ao poder (1976-77), falava ainda de socialismo, mas acrescentou-lhe Europa e austeridade – e logo disse que uma e outra eram economicamente incompatíveis com a Constituição, poucos meses depois de a ter votado! O socialismo foi “metido na gaveta” e fez a primeira das alianças à direita, com o CDS (1978). Em 1983 voltou ao poder e trouxe consigo o PSD, resgatando-o de uma pesada derrota – exatamente como pode acontecer dentro de meses. E veio mais austeridade, e com ela os anos em que milhões passaram a achar que se o 25 de Abril e a democracia, afinal, era aquilo, o melhor era não ter acontecido... O PS reviu e voltou a rever a Constituição com a direita (1982, 1989, …) para acabar com nacionalizações, a reforma agrária e tudo quanto cheirasse ao mesmo socialismo que havia defendido. Metade dos seus eleitores repudiaram-no em 1985, mesmo que, aterrados com a direita, votassem pouco depois em Soares para Presidente. Quando PS, PRD e PCP derrubaram Cavaco (1987), Soares não o substituiu por uma coligação PS-PRD: ofereceu-lhe a maioria absoluta. Só oito anos depois pôde o PS regressar ao poder (1995-2002). Escolheu o seu rosto mais sereno, o de Guterres, acompanhado, isso sim por (e conter-me-ei nos adjetivos) socialistas que qualquer liberal gostaria de ver como ministro (Vitorino, Coelho, Gama, Lello, os ministros económicos todos, e, sobretudo Vara e Sócrates) e que lançaram no espaço sideral qualquer credibilidade socialista do partido. Apesar (ou por causa?) do crescimento económico, bateram-se todos os recordes das privatizações. Nem Cavaco, nem hoje Passos chegaram àquele nível! Cantaram-se loas ao bendito euro, recusou-se ponderar sequer o que poderia por aí vir – e nesse mesmo ano (2002) começou a recessão. Por fim, chegou Sócrates, o “animal feroz”. No Congresso do PS de 2004, com todo o descaro que sempre o caraterizou, zurziu os “adoradores do Estado”. No ano seguinte chegou ao governo. Escuso de dizer mais nada...
As opções de fundo do PS estão inscritas na sua história. Partido do poder, deixa-se atrair por todos os poderes (os económicos, os internacionais) – e por isso os julgará imbatíveis. “Se não os podes vencer, junta-te a eles”, diz o refrão. Deve ser por isso que tanto ministro socialista é recrutado na banca privada, ou que o único ministro dos Estrangeiros a bater o pé a Washington (Freitas do Amaral) nem socialista era... É provável que o PS regresse ao governo em 2015. Pela quarta vez, fá-lo-á depois de a direita ter feito desandar o relógio da democratização social e económica. Das outras vezes não reverteu nunca o caminho, por que o haveria de fazer agora? Só se o forçarmos a perceber que, se o não fizer, quem ganhará será a esquerda que quer regressar ao caminho da construção da justiça social.