“O Presidente é parcial com o Governo e não acrescenta nada ao sistema”
O constitucionalista Jorge Reis Novais considera que o Chefe de Estado e o Governo tiveram uma estratégia de facto consumado durante os anos da troika.
Qual é, afinal, o sentido do acórdão de Agosto do Tribunal Constitucional (TC) sobre a reposição dos salários da função pública a partir de 2016? Há de facto uma imposição de restituí-los na íntegra?
A questão decisiva que o TC tinha para decidir na altura era saber se, no ano de 2015, relativamente a esta proposta de Orçamento, podiam ou não vigorar cortes aos salários. Isto porque os chamados cortes Sócrates estavam previstos para terminar com o programa de ajustamento, ou seja, a meio de 2014. O TC já tinha dado a entender que os permitia ao longo de todo este ano, mas não se sabia se os aceitaria para 2015. O TC decidiu que sim, que em 2015 ainda poderia haver cortes, mas a título excepcional. E apenas porque Portugal ainda estaria sob procedimento por défice excessivo e porque ainda se reflectia em 2015 o cumprimento das metas orçamentais que estavam no programa de ajustamento (2,5%). Para os anos seguintes, o que se infere do acórdão é que em 2016 já não haveria justificação para esses cortes.
Significa isso que o TC exclui completamente os cortes em 2016?
A meu ver, essa questão, tal como está a ser colocada, é absurda. Os direitos sociais, como o direito à retribuição, dependem muito do contexto económico e social, das dificuldades financeiras, das metas orçamentais, portanto estão muito dependentes da conjuntura. É impossivel estar agora a dizer que, em 2017, estes cortes fazem ou não fazem sentido. É perante as circunstâncias do caso concreto que o TC pode avaliar se se justifica ou não o corte proposto. Aquilo que podemos concluir agora é que em 2015 são possíveis e em 2016 não são admissíveis, mas quais serão as circunstâncias de 2016? Não se sabe.
Como analisa o fio condutor do discurso do Governo nestes três anos em relação ao TC?
A lógica do Governo é que, a partir do momento em que há metas orçamentais a alcançar, é possível fazer tudo, vale tudo. Isto é um discurso incompatível com o Estado de Direito. Qualquer governo em estado de Direito sabe que só pode alcançar objectivos através de meios legítimos. Tem de respeitar a lei e a Constituição em vigor. O que o TC tem dito é que, em algumas ocasiões, os meios não são legítimos. Mas na maioria dos casos tem dito que o são. Isto para este governo é uma admiração, parece que estava convencido que não há lei, não há Constituição, há apenas a vontade política de uma maioria, do mercado, e que podem impor tudo o que quiserem. Consideram que podem ir apenas a um grupo de pessoas cortar rendimentos, porque não há limites. Podiam, por exemplo, expropriar um banco, uma empresa, não pagar indemnizações, para atingir um fim. Isto não é digno de um governo que tenha espírito de Estado de Direito. Do meu ponto de vista, revela uma grande falta de cultura democrática e de cultura de Estado de Direito. Em qualquer país da Europa é um discurso absurdo. É um discurso que é impossível num país como a Alemanha: o Governo alemão queixar-se do TC alemão é uma impossibilidade! É impensável haver algum governante alemão que se queixe do seu TC, quando muito queixa-se de si próprio por não cumprir a Constituição.
Mas o TC não devia ter feito uma reflexão sobre o estado de emergência financeira?
E fez. E tem feito. É por causa exactamente dessa reflexão, de ter atendido à situação que vivemos, que deixou passar os tais cortes de salários que vêm desde 2011. Isso seri incomcebível se não vivessemos numa situação de emergência financeira. O Estado acordou com os funcionátios públicos e os pensionistas determinado salário ou pensão. É um acordo que foi estabelecido. Portanto, é inadmissível que uma das partes venha dizer ‘agora não cumpro’. Isso numa situação de normalidade seria inadmissível. O TC só o permitiu exactamente porque estamos numa situação de emergência financeira. Portanto, essa crítica de que o TC não tevem em conta a situação do país é perfeitamente injusta, quando desde 2010, o TC já deixou passar uma enorme quantidade de diplomas de constitucionalidade muito duvidosa. Por isso há muita gente a considerar o TC de um certo laxismo…
Mas no ponto oposto, muitos críticos do TC e o próprio governo consideram que essa situação de emergência financeira equivale a um estado de excepção constitucional. Porque discorda?
Sim, muitos constitucionalistas e o Governo chegaram a falar disso, mas esse já é um discurso abandonado. A Constituição prevê que, em certas situação de anormalidade – iminência de um golpe de Estado, uma invasão, uma catástrofe – é necessário limitar direitos. Mas a Constituição prevê quais são essas situações, quais são esses direitos que podem ser suspensos. A emergência financeira não está aí incluída. Mas também é certo que os direitos consagrados na Constituição não são absolutos, podem sempre ser limitados. Mas tem de haver uma justificação para essa limitação. E é por isso que o TC tem admitido alguns cortes. Mas ainda assim, o governo tem de respeitar aqueles princípios constitucionais que existem em qualquer democracia. Por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade, da proporcionalidade. O que o TC tem dito é que, sendo possível a restrição de alguns direitos, como o direito à retribuição, têm de ser respeitados os princípios constitucionais. E isso nem sempre aconteceu nos últimos anos.
O Governo optou por sacrificar sempre os mesmos direitos, os sociais?
Sim, e os direitos sociais só de alguns grupos de pessoas: os pensionistas e os funcionários públicos. O Governo escolheu esses dois alvos, eventualmente por facilidade, por razões eleitorais, por serem também despesa do Estado… mas isso repercutiu-se como sendo um imposto só sobre aquelas pessoas. É verdade que o Governo aumentou os impostos para toda a gente, mas quando o fez também os aumentou para os pensionistas e funcionários públicos.
O programa de ajustamento em si era constitucional?
Há alguns colegas meus, mesmo entre os críticos ao TC, que dizem que o memorando foi celebrado inconstitucionalmente. Do meu ponto de vista, não é uma questão muito importante, porque o memorando é sobretudo um acordo político entre o Estado e instituições internacionais, que depois se traduz necessariamente em documentos jurídicos, como as leis do Orçamento. É sobre essas leis que incide a actuação do TC, são essas que concretizam o acordo político e são essas que têm de ser fiscalizadas. O memorando não é um tratado, não é um instrumento jurídico.
Acha que o TC foi coerente ao longo destes três anos?
As questões que o TC foi chamado a apreciar não são fáceis, são questões de grande complexidade. Não se pode exigir que um tribunal colectivo, com 13 juízes, seja de uma coerência inatacável. Eventualmente há decisões em que podemos encontrar algumas contradições ou imprecisões. É inevitável. Mas em todo o caso, ao fim destes anos, é possível conhecer o pensamento do TC, quais os limites que impôs. Se o Governo quiser de facto cumprir a Constituição, sabe o que é que não pode fazer.
O que pensa da actual composição do Tribunal Constitucional?
Há uma nota muito interessante que tiro ao fim destes anos: é que o método de eleição é ajustado. De um lado, permite alcançar um objectivo que qualquer país democrático deve querer: ter um TC equilibrado. Politicamente, ideologicamente e culturalmente. Temos um TC que é o espelho da sociedade portuguesa. Isto é garantido porque os juízes são eleitos por dois terços do Parlamento, e por isso não pode ser uma só força política a impor a sua vontade. Coisa que não acontece em muitos outros países. Esta garantia do equilíbrio é fundamental. Durante muito tempo fui da opinião de que a nomeação podia ser mais plural. Em vez de serem apenas designados pelo Parlamento, os juízes podiam ser designados também pelo Presidente da República e pelo Conselho Superior da Magistratura. Mas estes anos demonstraram que o nosso sistema é o mais adequado. Imagino o que seria a intervenção de um Presidente da República durante os 10 anos de mandato: a composição do TC pode ficar completamente desequilibrada.
Como acontece no Brasil?
Sim. Nos últimos 12 anos, o Partido dos Trabalhadores esteve no poder e, através do Presidente da República, acabou por designar todos os juízes do Supremo Tribunal, que equivale ao nosso TC. Não é uma situação equilibrada.
Mas a dependência parlamentar não partidariza muito os juízes?
A meu ver isso não acontece. Porque, por um lado, dos 13 juízes, seis têm de ser de carreira, o que garante logo uma certa independência. Segundo, os juízes, quanto mais qualificados são, quanto mais vida própria têm, têm uma atitude de independência. Ao longo destes anos, os nossos juízes demonstraram que são independentes de quem os designou. Por isso ouvimos muitas vezes o Governo ou pessoas da maioria ofendidos a dizer que não era isso que estavam à espera quando os designaram. Mas eu não acredito que houvesse um único juiz do TC que fosse para lá para ‘fazer um frete’. Se olharmos para os sentidos de voto, vemos que não correspondem à designação partidária. Penso que a forma de designação é adequada e que a composição do TC é equilibrada. Se isso não agrada ao Governo, temos pena.
Não deveria haver mais constitucionalistas no TC?
A primeira pessoa que defendeu isso fui eu próprio e não fui bem entendido. O nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade não estimula a participação de constitucionalistas. A meu ver erradamente.
O Presidente da República foi coerente na forma como pediu ou não a fiscalização de diplomas?
A esse nível, se quisesse indicar um modelo de incoerência, temos aqui o exemplo do nosso Presidente da República. As contradições são tantas que é difícil enumerá-las. Saliento o facto de quando este Presidente se candidatou a primeira vez, ter deixado expresso no seu programa que nunca faria, em relação às fiscalizações de constitucionalidade, aquilo que Mário Soares tinha feito quando era Presidente da República: usar aquele instrumento para o atacar enquanto primeiro-ministro. Cavaco Silva deixou expresso que, quando tivesse dúvidas de constitucionalidade, pediria a fiscalização. Mas o que tem feito nestes últimos anos é precisamente o contrário. Nunca pediu a fiscalização preventiva, mesmo quando tinha dúvidas e as expressava. A certa altura dizia: “Isto é um regime iníquo”. Estava a dizer que violava o princípio da igualdade e a Constituição, e mesmo assim não pediu a fiscalização preventiva. E inventava umas desculpas, como dizer que, se pedisse a fiscalização preventiva, o Orçamento não entrava em vigor em Janeiro.
O que não é necessariamente verdade…
Não, e mesmo que fosse, não teria problema nenhum. O país nunca fica sem Orçamento. Mas ele próprio podia pedir para encurtar o prazo de apreciação do TC. Ou podia fazer como fez agora (no Verão), quando pediu fiscalização preventiva a pedido do Governo no mesmo dia e mesmo sem ter dúvidas. Ele não faz isso, na minha opinião, porque no fundo estava alinhado com o Governo numa estratégia de facto consumado: depois do diploma entrar em vigor, já ninguém vai ter coragem de mexer nisso.
Mas o TC teve essa coragem…
Teve, e é uma das atitudes mais louváveis do TC. Em 2012, quando a questão se colocou pela primeira vez – ninguém pediu fiscalização preventiva, o OE entrou em vigor e o TC , em sede de fiscalização sucessiva, decidiu pela inconstitucionalidade de algumas normas, mas permitiu que o Orçamento vigorasse todo o ano para não pôr em causa o cumprimento das metas orçamentais. Nunca o Tribunal tinha feito isso. Mas quando o fez, lançou uma enorme inquietação junto do Governo e do Presidente, porque a partir daí, esta política de facto consumado já não podia funcionar. Foi por isso que, este ano, o Governo recorreu ao Presidente para este pedir a fiscalização preventiva de normas que queria colocar no Orçamento do próximo ano. Isso permite que o Governo apresente o Orçamento já sem medidas que poderiam ser declaradas inconstitucionais mais tarde.
Porque é que o Governo só recorre a este expediente no final do mandato? É por uma questão eleitoralista?
Pode ter sido, mas pode ter havido outras razões, como pressões europeias, por uma questão de segurança do cumprimento das metas e de evitar mais orçamentos rectificativos. Mas era algo que o Governo e o Presidente da República podiam ter evitado, e não quiseram.
O Presidente da República usou o argumento da entrada em vigor do OE a 1 de Janeiro para não pedir fiscalizações sucessivas, mas esse argumento já não lhe parece servir para responder aos pedidos de antecipação das eleições. Porquê?
É mais uma das manifestações de enorme incoerência do Presidente.
Acha que o Presidente está a ser parcial?
Completamente, com este Governo. O que é muito grave para o funcionamento do nosso sistema. A grande vantagem do sistema semi-presidencial é precisamente não apostar tudo no vector parlamentar e governamental. É ter outro órgão com legitimidade democrática plena que pode fazer o balanceamento e desempenhar o papel de moderação. Quando o Presidente se alinha completamente com o Governo e contra a oposição, perde todas estas faculdades e deixa de acrescentar alguma coisa de positivo. Nestes últimos anos, é como se vivêssemos em sistema parlamentar. O Presidente não acrescenta absolutamente nada.
Defende a antecipação das eleições legislativas?
A minha reserva não tem que ver com a entrada em vigor do Orçamento. No nosso sistema constitucional, a Assembleia da República não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses do mandato nem nos últimos seis meses de mandato do Presidente. Se tivessemos eleições, por exemplo, em Maio, isso determinava que não podia haver nova dissolução durante praticamente um ano, caso as coisas corressem mal. Numa situação em que não é certo que vá haver maioria absoluta de uma só força ou em coligação, fechar a possibilidade de realizar novas eleições pode ser perigoso.
Não acha que ia sendo tempo de fazer uma nova revisão constitucional?
As únicas questões realmente controversas da Constituição estão no preâmbulo: passagens que não têm força normativa, como a passagem para o socialismo. Mas não é necessário para a vida política normal, para o cumprimento dos objectivos que o Governo quer alcançar. É perfeitamente possível alterar o sistema político sem mexer na Constituição. Eu acho que é positiva a estabilidade constitucional. Nós já vivemos muito tempo numa situação de revisão constitucional permanente. Agora felizmente vivemos em estabilidade constitucional. Se houver bloqueios, deve alterar-se, mas sabendo exactamente para quê.
Tem-se falado muito na necessidade de revisão do sistema eleitoral. Não é um bloqueio?
O que é que funciona mal no nosso sistema eleitoral? Ele permite a representação de todos os partidos políticos, mesmo os mais pequenos; não bloqueia a entrada no Parlamento de novos partidos, faz uma representação de todas as correntes, tem permitido a alternância democrática, tem permitido a formação de governos maioritários. O que é funciona mal?
Fala-se na maior aproximação entre eleitores e eleitos… Admitamos que era isso, mas o que é que se propõe alterar para aproximá-los? Ciclicamente aparece uma mezinha. A última é o voto preferencial, como os círculos uninominais foram durante muito tempo.
Mas estão previstos na Constituição, como a redução do número de deputados… E mesmo o voto preferencial é possível. Mas que vantagens traria? Dar ao eleitor a possibilidade de hierarquizar os candidatos. Mas quando comparamos essa pretensa vantagem com os seus inconvenientes, são de tal ordem que esta proposta se torna absurda. Por exemplo: o círculo de Lisboa elege quase 50 deputados. Cada partido, imagine-se 20 partidos, apresenta 40 deputados ou mais. Hoje, o eleitor vota num partido. Com o voto preferencial, o eleitor teria de levar para a cabine de voto a lista dos mil candidatos que se candidatam ao círculo de Lisboa. Além disso, não conhece as pessoas, acabaria por escolher os nomes mais populares, um artista de telenovela, um jogador de futebol… é o que acontece em países como a Itália, o Brasil. E o que é que dá? Como cada candidato faz uma campanha própria, os da mesma lista acabam por fazer campanha uns contra os outros. Em vez de ser um confronto entre propostas diferentes, seriam confrontos entre pessoas. Além de que a maioria das pessoas nem sequer vai ordenar, por isso a vontade de uma minoria é que ia vingar.
Este afastamento entre eleitores e eleitos não tem a ver sobretudo com a atitude dos eleitos? Como responsabilizar mais os eleitos?
A insatisfação é muito devida ao facto de as pessoas não encontrarem respostas, e por isso se dizem insatisfeitas com a democracia. Isso é verdade e indiscutível, revela-se nas sondagens, na abstenção. Mas o remédio é mexer no sistema eleitoral? Mas a questão da responsabilidade não se resolve com o voto preferencial . Pelo contrário, o voto preferencial promove o populismo, o localismo e a demagogia.
E as primárias?
Essa é outra questão, provalvelmente a mais importante e curiosamente não foram os académicos que as propuseram, foram os partidos: o PS e o Livre. De facto, as primárias dão a possibilidade de as pessoas realmente intervirem, não deixa tudo nos militantes. Muitas pessoas não querem ser militantes partidárias e não tinham forma de intervir. Como se viu no PS, apesar da burocracia, muita gente participou nessas eleições. Mas não concordo com um ritual obrigatório imposto pelo Estado. Isso destruia o interesse das primárias. Compete a cada partido decidir isso. Mas se os partidos quiserem manter o interesse das pessoas, as primárias são um óptimo mecanismo.