O mau e o péssimo
Um governo de gestão será sempre mau. Mesmo que ele seja transitoriamente bom para as oposições, fritando o Governo em lume brando.
“O Governo tem plena legitimidade para governar. (…) Cabe agora ao Parlamento decidir pela plenitude da sua entrada em funções”. Palavras do Presidente da República, em 30 de Outubro, na posse do XX Governo. Ao contrário do que pensa e escreve a maioria dos comentadores, não é líquido que o Presidente nomeie um XXI Governo, se o actual for reprovado no Parlamento. A “plenitude” de funções pode entender-se tanto como a não-rejeição parlamentar, como a transformação de um governo recusado no parlamento em governo de gestão, até que novo Presidente tome conta do País. A ambiguidade permanece. Como já foi notado, a segunda solução deixaria a batata quente para o próximo Presidente. Pouco depois de tomar posse incumbe-lhe decidir: se aceita o veredicto do Parlamento, nomeando novo Governo, o que significa que reconhece a sua estabilidade potencial; se dissolve a Assembleia, convocando eleições antecipadas. A solução “governo de gestão” não é apenas má para o País, ela é perversa para os candidatos presidenciais, obrigando-os a definirem-se, mesmo que não queiram. Perversa sobretudo para Marcelo, não faltando quem a considere uma vingança servida fria.
Apesar do coro de analistas a admitirem o recuo de Cavaco, importa revisitar o tema. Porque é o “governo de gestão” uma solução péssima? Desde logo por beneficiar o infractor em vez de o punir: premiar os que nomeiam mais de cem dirigentes no termo de mandato; os que falseiam a informação fiscal, omitindo a parte desagradável e difundindo na campanha a que lhe traria votos, como no caso da devolução da sobretaxa do IRS; os que colaboraram, ou até solicitaram a empresas amigas que não despedissem pessoal no período da campanha; os que tudo tentaram para apresentar a privatização da TAP como facto consumado, mesmo que os potenciais compradores não garantissem financiamento capaz; os que tudo fizeram para privatizar transportes públicos por ajuste directo, em flagrante violação das regras da concorrência; os que tudo tentaram para se verem livres do Novo Banco, mesmo que vendido ao desbarato, cabendo aos contribuintes a factura directa ou indirecta dessa pressa ideológica. Decisões ditadas pela fúria, inimiga da razão.
Um governo de gestão escudar-se-ia na instabilidade para deixar escorregar o défice de 2015 e também o de 2016, tentando assacar culpas ao PS; radicalizaria a luta política, municiando a direita trauliteira para sair à rua, mais afoita que nunca; ocuparia os media vulneráveis com lixo ideológico e mentiras quotidianas; emitiria legislação descuidada e provocatória sobre temas populares, esperando que o Parlamento a revogasse; criaria instabilidade nos mercados, acicataria a fuga de capitais, dissuadiria investidores, apressaria corridas de depositantes.
Um governo de gestão não governa, mas ocupa o centro do poder. Venderia ao desbarato o que restar, aproveitaria os duodécimos para proveito imediato; romperia a lei dos compromissos no dia-a-dia sem a rever decentemente; hipócrita, continuaria a atrasar o subsídio de parentalidade com a desculpa da subida da natalidade; descuidaria o futuro, de olho preso nas eleições que se esforça por antecipar. Poderia até mostrar-se amigo dos pobrezinhos ou convertido à necessidade de reformar o Estado, como proclamou o Primeiro-Ministro na posse. Poderia até tentar reformas aparentemente consensuais. Mas porque não o fez no mandato anterior e só agora se apressa, quando sente as barbas de molho?
O Parlamento exerceria os seus poderes de recusa, de negação e, com mais dificuldade, os de criação ou construção. Tentaria legislar em áreas do executivo, o que resultaria em produção canhestra. Recusaria um orçamento indigno, mas pouca liberdade teria nas escolhas concretas. Poderia paralisar a legislação do Governo, mas não impediria portarias e despachos. Recorreria amiúde ao Tribunal Constitucional, sem garantir efeito suspensivo em tudo o que contestasse, nem assegurar ganho de causa. Poderia legislar sobre isenção nas nomeações, mas não poderia revogar as anteriores designações partidárias, nem as que o Governo entendesse prosseguir.
Temos visto o Presidente invocar o superior interesse nacional para justificar as suas decisões. Até demais. Quem é eleito para tão alto cargo, não devia carecer de permanente afirmação do que está implícito nas suas funções. Um governo de gestão será sempre mau. Mesmo que ele seja transitoriamente bom para as oposições, fritando o Governo em lume brando. O que se sabe ser mau deve ser evitado. Se o não for, degenera em péssimo.
Eis por que é tão importante um acordo entre os partidos que se opõem a que o governo actual se mantenha em gestão. Um acordo que não permita desculpas.
Professor catedrático reformado