O bairro que se despediu de Maria Barroso só guarda “boas memórias”
Ilustres e desconhecidos. Largas centenas de pessoas passaram nesta terça-feira pelo Colégio Moderno, em Lisboa, o local escolhido para o velório de Maria Barroso. O bairro onde viveu “vai sentir a falta” dela. Cumprimentava e falava com todas as pessoas da mesma forma.
Maria Barroso morreu na madrugada de terça-feira, com 90 anos, depois de uma queda em casa, a 25 de Junho. O velório decorreu nesta terça-feira, no colégio onde Maria Barroso foi professora e directora. Fica na rua Dr. João Soares, “educador e ministro da República 1878-1970”, lê-se na placa. Se, ao início da tarde, o ambiente na rua estava relativamente tranquilo, apesar das câmaras de televisão e dos fotógrafos, a partir das 18h, quando os portões se abriram a toda a gente, o número de pessoas que quis ir ao velório de Maria Barroso foi aumentando.
Fora dos portões, os fotógrafos tentavam registar todas as chegadas: Vítor de Sousa, Eduardo Barroso, Guilherme d’Oliveira Martins, Carlos Monjardino, Jorge Sampaio, Adriano Moreira, Almeida Santos, Freitas do Amaral, Vasco Lourenço, Rui Vieira Nery, Maria Cavaco Silva, entre muitos outros.
Não foram só as figuras mediáticas a tecerem elogios. Na rua onde viveu Maria Barroso, de uma ponta à outra, todos lhe reconheciam a simpatia, a simplicidade. “Quando passava cá queria saber como corria o negócio”, recorda o dono da tabacaria Copião, José Cassamo, 60 anos. André Lobo, 30, que trabalha no restaurante Borges, repete o mesmo: “Ela passava por aqui de manhã. Parava, cumprimentava e, às vezes, perguntava como corriam as coisas.”
O funcionário da outrora livraria 111 e, agora, Ler Devagar do Campo Grande, Pedro Oliveira, 33 anos, conta que Maria Barroso ia lá muitas vezes. Como a família Soares tem uma enorme biblioteca, procurava sobretudo livros específicos, sobre determinado país, uma data em particular, uma instituição. E conversava com Pedro Oliveira, que gostava de a ouvir contar que privou com Miguel Torga e José Régio. “Ela tinha um grande afecto pela livraria, perguntava sempre se estava tudo bem.”
Ao longo da tarde, familiares e amigos foram aparecendo no colégio. Mário Soares chegou num carro e todas as atenções se viraram para o antigo Presidente da República. Acenou e parecia querer sair antes de passar os portões, apesar dos inúmeros jornalistas à volta. Num momento algo confuso, a pergunta ecoou: “Vai sair?”. Mas uma outra voz sobrepôs-se: “Deixem-no ir!”. E Mário Soares só saiu do carro depois de cruzar os portões.
O histórico socialista Almeida Santos e o fundador do CDS Freitas do Amaral não poupam num só adjectivo para descrever a amiga: “Uma mulher excepcional. Pequenina, mas com uma energia incrível. Deixa-me uma recordação única, pelo talento, pela graça, pela beleza. Foi uma das mulheres que mais admirei em toda a minha vida. Neste momento sinto-me vazio. Não esperava que ela desaparecesse assim”, diz Almeida Santos. Freitas do Amaral acrescenta: “Plantou muitas sementes e árvores.”
A primeira-dama, Maria Cavaco Silva, fala numa “mestra de saber e de sabedoria”. O filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço sublinha, entre muitas outras características, a consciência que Maria Barroso tinha dos “valores fundamentais da democracia”. A actriz Glória de Matos enaltece a mulher de causas. Para o coronel Vasco Lourenço, “Portugal de Abril está mais pobre”.
Maria Arlete Silva, 70 anos e uma das proprietárias da galeria 111, era amiga de Maria Barroso. Chegou àquela rua a 3 de Setembro de 1963, para trabalhar na então livraria 111. Recorda-se de tudo: das peças de teatro onde a amiga entrou, dos recitais de poesia, de estar com a empregada da família à espera da ambulância que traria a filha Isabel Soares, vítima de um acidente em Espanha. Lembra-se dos agentes da PIDE à porta de casa ou encostados ao vidro da livraria. De como Maria Barroso gostava de passear no jardim do Campo Grande.
Nos dois cafés Rito, ninguém se esquece de como gostava dos pães de queijo. E de como obrigava os adolescentes, alunos do colégio, a apanhar o lixo na rua. Eles obedeciam, “respeitavam-na”, mas ela também apanhava tudo com eles. “Falava com toda a gente da mesma maneira. Este avental que trago não lhe fazia diferença nenhuma”, garante Teresa Carneiro, 43 anos, atrás do balcão de um dos cafés. “O bairro vai sentir a falta. Só guardamos boas memórias”, diz Ivone Peixoto.
As cerimónias fúnebres realizam-se esta quarta-feira de manhã, na igreja do Campo Grande, com uma missa de corpo presente às 11h. O funeral segue para o cemitério dos Prazeres, em Lisboa.