No melhor dos caos possíveis

Jogos Olímpicos: citius, altius, fortius. Mais rápido, mais alto, mais forte. Novos Jogos Judiciários: mais lento, mais enterrado, mais fraco, ou, como diziam os antigos: paulius, teixeirius, cruzius. Alea jacta est, os dados estão lançados, mas onde é que os meteram que ninguém os encontra?

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Depois da chatice do Terramoto de Lisboa de 1755, do enfado da participação na I Grande Guerra e da maçada da Guerra Colonial, Portugal enfrenta agora o “transtorno” da nova organização judiciária e da sua plataforma informática Citius. Mas como a ministra Paula Teixeira da Cruz assegurou que “não há caos” na Justiça portuguesa, os juízes, advogados e funcionários dos tribunais podem regressar alegremente ao trabalho.

Poderão agora perguntar “mas qual trabalho”?, uma vez que o portal Citius muitas vezes não abre, outras vezes abre mas apaga dados antigos, outras não aceita os dados novos. Ou então, desde a reabertura do ano judicial, diverte-se a misturar testemunhas e documentos em processos errados, a enviar processos para o Grande Nada, além de obrigar à anulação de sessões de julgamento já feitas. E, se entretanto se perderam as novas comarcas, elas andam por aí, nós sabemos que elas andam por aí.

Pois bem, dão-se várias sugestões para que os juízes e advogados queixosos aproveitem as próximas semanas, em vez de ficarem a olhar um ecrã bloqueado, chateados como perus: por exemplo, se estiverem em Lisboa no Campus de Justiça do Parque das Nações, podem visitar o Pavilhão do Conhecimento e procurar respostas científicas para o mistério de como o Caos (agora conhecido, pelos astrónomos, como o Transtorno) deu origem ao Universo. Se acharem isto demasiado complicado, os infoexcluídos queixinhas poderão seguir para o Oceanário, ali mesmo ao lado, e aprender a contar arenques e atuns (em geral, começa-se pela frente do cardume, mas há excepções), enquanto os técnicos resolvem o percalço.

Parem de exagerar o suposto falhanço do novo Citius porque será resolvido num instante, é só dar destino a 3,5 milhões de processos em papel, 80 milhões de documentos, 120 milhões de actos processuais. Porque nada pára o Novo Mapa Judiciário, que há-de ser a mais celebrada de todas as reformas, ainda que demore alguns anos, mas o que é isso comparável com a idade geológica da Terra? A justiça foi sempre lenta e agora a culpa é da ministra? Tenham mas é juízo (mesmo que os 1.º , 2.º e 3.º juízos estejam bloqueados)!

Atrás da grande operação, está, adivinha-se, uma resposta corajosa e inovadora à crise económica nacional. Num momento em que a moda é o regresso das indústrias manuais e de charme (o disco de vinil, os barbeiros, etc.), não é só o velho fax, a máquina de escrever, a cassete-pirata e o telefone de baquelite que encontram caminho para um glorioso ressurgimento. A visão holística do Ministério da Justiça permite ainda uma aposta nos jovens paquetes de entrega de encomendas e nas suas motoretas, que se vão juntar à multidão de ciclistas que para aí andam a chocar nos carros. Para quem realmente percebe o alcance do que está em jogo na modernização da Justiça, várias universidades preparam Cursos Superiores de Caligrafia e Iluminuras, onde os alunos de Direito aprenderão a escrever bonito como um meirinho ou um juiz-de-fora, em papel de madeira ou pergaminho, ou tirar uma pós-graduação em sentenças judiciais lidas por arautos montados em burros.

O mais entusiasmante é que, não se encontrando processos pendentes no computador, metade desses 3,5 milhões de casos velhos podiam era (é só uma sugestão) arder por acaso e limpavam-se os tribunais de toneladas de transtornos. Isto aconteceu em sociedades avançadas, como a Roma no tempo de Nero (ano 64), a Londres de 1666 e naquela contrariedade que se verificou em Lisboa no século XVIII. Já para não falar na Biblioteca de Alexandria, que já foi há dois mil anos mas, justiça seja feita a quem lhe deitou fogo, não tem feito assim tanta falta.

Mas estas propostas podem não colher adeptos, mercê dos atavismos e corporativismos que têm manietado as reformas do Governo, em particular a do mapa judicial. Por culpa desses apóstolos da desgraça, põe-se a hipótese de a migração física dos processos das comarcas desaparecidas ser agora acompanhada pelo comissário geral dos Refugiados, António Guterres, ele lá sabe o que fazer com criaturas expulsas da sua terra.

Toda esta revolução se deve à personalidade forte de Paula Maria von Hafe Teixeira da Cruz (Luanda, 1 de Julho de 1960), professora de Direito e vice-presidente da comissão política do PSD, que veio para Portugal em 1975 durante o processo da descolonização, esse aborrecimento.

Entretanto, se não seguirem para a frente as investigações contra Pedro Passos Coelho por pagamentos indevidos (Tecnoforma) e a Luís Filipe Menezes por corrupção (Câmara de Gaia), alguma coisa na Justiça não está bem. Ou não está mal. Se é que está lá qualquer coisa.     

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