“Não há consenso possível no curto prazo sobre a renegociação da dívida pública”
As divisões na Europa sobre a reestruturação da dívida levam Carlos Moedas a aconselhar outros consensos menos fracturantes. A economia está numa camisa-de forças e, diz, é preciso maior homogeneização das leis.
A fragmentação do mercado único é o maior entrave ao crescimento na Europa, a crise veio quebrar a convergência entre os países e a maior dificuldade para os mais débeis é o equilíbrio entre “reformas estruturais”, finanças públicas e investimento. Carlos Moedas diz conhecer bem a dificuldade desse triângulo. Foi o interlocutor principal do primeiro Governo de Passos Coelho com a troika e, agora, como comissário europeu desde 2014, considera que a Comissão Europeia é muitas vezes “culpabilizada” pelos impasses na Europa quando a decisão está nas mãos dos governos. Com a reestruturação das dívidas públicas diz não perder muito tempo. As prioridades, contrapõe, devem ser outras: estabilizar, reequilibrar, fazer reformas. Mas não fecha nenhuma porta e mede bem as palavras quando fala sobre a dívida: “Todos os primeiros-ministros têm o direito de pôr essas discussões em cima da mesa”.
O plano de investimento para a Europa dá alguma folga na contabilização do investimento público. No entanto, o facto de Portugal ainda não ter saído do Procedimento por Défice Excessivo coloca algum entrave à flexibilização. Não é uma contradição que os países que mais estão a precisar de investimento público acabem por ter algum entrave nesta leitura das regras?
O presidente [da Comissão Europeia, Jean-Claude] Juncker desde o início quis – e assim conseguimos – flexibilizar essas regras. Esse espaço foi encontrado e foi decidido logo no princípio da Comissão. Agora, a Europa é gerida por regras, temos que ter consciência de que essas regras são importantes, que devem ser de igual modo aplicadas a todos. Se olharmos para a Europa no seu todo, temos que pensar que temos de dar incentivos àqueles países que estão a fazer as reformas, a tomar as decisões certas e que têm espaço para tomar essas decisões. Um país que não tiver défice, que tiver as contas em dia e que tiver as suas reformas feitas deve ter algum benefício. Os outros países têm que fazer esse caminho – e isso é o caso de Portugal, que tem estado a fazer o caminho como outros países na Europa. É sempre delicado pensar até que ponto essa flexibilização deve ser feita. Eu penso que ela já foi. Podíamos obviamente fazer mais, mas isso é uma questão política que todos os países têm que resolver [no Conselho Europeu]; a Comissão é apenas o braço executivo dessas decisões políticas que são tomadas pelos 28 e essas decisões já foram tomadas. Obviamente que tudo isto pode evoluir para o futuro.
Continuamos a reproduzir os padrões de diferença no seio da União Europeia, ou seja, o Plano Juncker não é um instrumento para maior integração e promoção da nivelação europeia, mas continua a reproduzir o status de partida dos países , estruturalmente.
São dois pontos diferentes: um é flexibilizar ou não o Pacto de Estabilidade [e Crescimento] e aí houve um trabalho feito; depois, o Plano Juncker e a sua aplicação em todos os países. O investimento que não está a funcionar na Europa – muito do investimento privado em inovação e ciência – vem de nós sermos capazes de atrair os privados. Como é que o fundo Juncker fez isso? Veio dizer aos privados que, se eles investissem num projecto determinado, a Europa dava uma garantia, um seguro, em que as primeiras perdas (imaginemos que o projecto não tem sucesso) seriam para o contribuinte europeu. É como um seguro de vida para que os empresários tenham ainda maior apetite. O que estamos a dizer é: “Venham, invistam e se vos acontecer alguma coisa nós estamos aqui para vos ajudar”. Maior flexibilização do que essa não pode haver.
O que é que falhou para Portugal não ter nenhum projecto já aprovado em inovação e infra-estruturas?
Acontece em vários países. Temos três anos [para implementar o Plano Juncker] e há muitos países que também não têm nenhum projecto na área da infra-estrutura e inovação. Há países que estão a funcionar bem: é o caso de França, Reino Unido e Dinamarca, em que houve imediatamente uma coordenação através dos privados, muitas vezes através de organizações para lançar projectos e desafios. Portugal não está numa situação diferente de muitos países.
Há alguma estratégia específica que esses países têm e que poderia ser seguida por Portugal?
Em Inglaterra [há] uma unidade de pessoas que andam à procura desses projectos, que o andam a explicar pelo país. No caso francês, também se considerou imediatamente uma plataforma para se conseguir tudo o que é projectos da área eficiência energética e edifícios, em que se juntaram as câmaras municipais, as regiões e empresas privadas.
O Governo português já tentou entrar em contacto consigo no sentido de dinamizar algum projecto nessa matéria?
Desde praticamente o dia em que o Governo tomou posse, tanto o ministro Pedro Marques [Planeamento] como o ministro Manuel Heitor [Ciência e Ensino Superior] imediatamente me telefonaram para marcar uma reunião. O Governo português está, sem dúvida, empenhado e comprometido neste Plano Juncker.
Há projectos de investimento estratégico em ciência que Portugal pode aproveitar no quadro do Plano Juncker?
O tipo de investimento de que precisamos na Europa é em inovação e em ciência. Profundamente acredito que, se não tivermos esse investimento, não vamos conseguir criar emprego. Os políticos europeus têm-se explicado de uma forma muitas vezes imperceptível… A palavra “inovação” tornou-se um bocadinho uma buzzword, uma palavra que utilizamos entre pessoas de uma área técnica, quando a palavra está ligada à criação de emprego. Só conseguimos criar emprego em empresas inovadoras. As que não são, desaparecem ao fim de algum tempo. Se não inovamos, morremos. O mundo só tem uma constante hoje em dia, que é a mudança. E as empresas têm que se adaptar a essa mudança através da inovação. As empresas que estão realmente a conseguir estar à frente das outras, a criar mais emprego, são as inovadoras.
A OCDE, perante a actual conjuntura de incerteza, veio pedir aos líderes mundiais uma aposta particular no investimento público. A Comissão acompanha esta leitura? A OCDE fala explicitamente em “políticas orçamentais expansionistas”.
A Comissão acompanha a ideia de que é preciso investir mais em inovação e ciência. Há um equilíbrio sempre difícil nos países entre as reformas estruturais, as finanças públicas e o investimento. Não podemos descurar nenhum vértice do triângulo. Um país que não tenha sustentabilidade nenhuma de finanças públicas, totalmente endividado, que não consiga pagar os seus serviços, que não consiga ter um sistema que funcione, também não consegue atrair investimento. Agora, acompanhamos a leitura de mais investimento exactamente na inovação e na ciência, porque ele ainda é muito pouco. Estamos a falar de países que investem, como Portugal, quase 1,5% do PIB em investigação e inovação, e países como a Finlândia que investem 4%. Quando estão a equilibrar as finanças públicas, têm de fazer escolhas – e essas escolhas deveriam direccionar-se para a inovação e a ciência. Agora, as dificuldades eu conheço-as bem, porque estive numa situação [como interlocutor da troika] em que vi qual era a dificuldade deste triângulo.
A verdade é que a economia europeia teima em não arrancar. Do ponto de vista das políticas económicas e da resposta à crise, o que é que tem falhado?
A economia europeia está ainda quase numa camisa-de-forças, no sentido em que a Europa não é uma. Esta fragmentação de que cada país tem exactamente as suas diferentes leis, as suas diferentes maneiras de actuar, as suas interpretações da lei, isso é o que está a travar o crescimento. No mundo digital a capacidade, ou não, de crescer tem a ver com velocidade e com escala. Quando vejo esses jovens empresários que me dizem: “Ah, fiz uma empresa em Espanha, mas agora fui para a Alemanha, tenho de fazer outra, tenho outra lei a respeitar”… Isso não acontece nos EUA. Também há leis estaduais, mas elas são muito mais homogéneas. O que falta na Europa para libertar esse crescimento é a maior homogeneização entre as várias leis e os vários mercados, seja ele no trabalho, na justiça…
A resposta à crise contribuiu para a convergência ou para a divergência entre países?
A pergunta não pode ter uma resposta, no sentido em que num momento de crise não [se] conseguem ler as correlações. Um momento de crise é exactamente essa disrupção da convergência. A Europa estava a convergir desde há muitos anos e a crise veio criar esse aperto e essa diferença. Aquilo que a Europa tentou fazer foi encontrar instrumentos para que isso não volte a acontecer. Qualquer crise quebra a convergência.
Convergência e solidariedade. Ao nível das grandes orientações europeias, de questões que travam esse desenvolvimento, acha que o tema da renegociação da dívida, sobretudo dos países da periferia, vai acabar por se impor ou vai continuar a ser um tabu? Para o FMI já não é um tabu…
Se olharmos para aquilo que tem sido a crise… Eu acho é que [a expressão “restruturação da dívida”] se tornou uma palavra política e não uma palavra técnica, como deveria ser desde o princípio. Todos os países estão constantemente a mudar a taxa de juro, a mudar os pagamentos para reembolsar as dívidas e tudo isso, tecnicamente, são pequenas renegociações. Aquilo que é difícil na Europa é olhar para um sistema que tem 28 à volta da mesa, com interesses muito diferentes, onde não conseguimos nunca chegar ao mesmo tipo de acordo como se estivéssemos num país como os EUA. Se fizesse a pergunta na Alemanha, Finlândia ou Suécia, a resposta seria diametralmente oposta: “Sim, mas qual é a responsabilidade desses países? Por que é que não querem pagar, quando nós lhes emprestámos dinheiro?”. Não acho que seja uma questão neste momento, porque politicamente temos que conseguir dar os passos para o futuro. E os passos são estabilizar, reequilibrar, fazer as reformas. Sinceramente, é daqueles temas em que eu não consigo intelectualmente perder muito tempo com ele, exactamente porque sei que há outras maneiras de conseguir avançar na Europa e não estar a ir para temas onde não vamos conseguir qualquer tipo de consenso. Lembra-se quando o professor Vítor Bento fez um trabalho sobre a renegociação da divida? Lembro-me de falar com ele e a conclusão é que, para ter algum tipo de mutualização era preciso ainda ter regras mais rígidas. As visões entre as várias pessoas são muito diferentes.
Os eurobonds também estão fora do horizonte?
Isso são discussões ongoing na Europa, que dependem dos acordos entre os vários países e que vão depender dos vários equilíbrios na Europa. São discussões que estão sempre a ser tidas a vários níveis. Todos os primeiros-ministros têm o direito de pôr essas discussões em cima da mesa. Penso que algumas são possíveis, outras não são (mas não lhe sei dizer quais, porque as dinâmicas não são lineares).
E no que depender da Comissão, a discussão é possível?
Repare, a Comissão tem todo o tipo de discussão. Os técnicos da Comissão são os primeiros a ter todo o tipo de estudos e capacidade de olhar para esses pontos. Mas é realmente uma decisão do Conselho, é uma decisão dos países. A Comissão é a execução dessas decisões dos países. Será que [em relação a] esses temas específicos sobre eurobonds, renegociação da dívida, podemos pensar que a curto prazo vai haver um consenso? Penso que não. São temas em que não há um consenso possível no curto prazo. Focalizo-me noutros temas em que sei que há consenso. Prefiro pedir à Europa para investir mais em ciência do que propriamente em temas que são tão fracturantes. Rompuy [ex-presidente do Conselho Europeu] quando recebeu o Prémio Nobel [atribuído à UE em 2012] dizia que a política na Europa é enfadonha e aborrecida, mas é o preço que temos a pagar para não estarmos em guerra uns com os outros. O processo político na Europa é lento. Muitas vezes a Comissão é culpabilizada de determinados pontos de que não tem culpa, que são apenas o resultado dos acordos entre os países.