L'État c'est lui?
Creio que me não enganei ao longo de todos estes anos, quando interpretei a devastação neoliberal e austeritária como um processo de transição para um novo regime.
Crispado. Furioso. Cavaco comportou-se como um banal chefe de partido que, sem que a Constituição lho permita, quer abrir um precedente perigoso em qualquer democracia: barrar o caminho do poder à maioria dos representantes legítimos da vontade popular. Não, nada a ver com Sampaio vs. Santana em 2004: Sampaio deu posse a um governo maioritário de Santana Lopes a meio de uma legislatura, sem que este se tivesse submetido a eleições, e só o depôs quando entendeu, nos termos da Constituição, que tal era “necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas” (art. 195º). A ameaça velada de Cavaco de que não dará posse a um governo que “dependa do apoio de forças políticas” que, na sua perspetiva, são “antieuropeístas” não tem precedente na nossa história democrática e aproxima-se de precedentes como o dos militares chilenos que queriam impedir a tomada de posse de Salvador Allende, mal ele foi eleito, em 1970, com o apoio de socialistas e comunistas. Três anos depois, foi o que se viu...
E contudo estamos só a falar da preparação de um governo do PS! Ainda não ouvi ninguém prever sequer a participação direta de ministros do BE ou do PCP e o ambiente que nos querem criar é o da necessidade iminente de ter um porta-aviões americano no Tejo... Que a direita, os Vascos Pulidos Valentes e os Antónios Barretos deste mundo, os comentadores (até o Relvas já voltou!) tergiversem História e Direito Constitucional por igual, e vociferem que os “Russos vêm aí!” é em tudo revelador de como esta gente descolou da sociedade em que vive e julga ver à sua frente as alucinações de uma banda desenhada do Super-Homem dos tempos da Guerra Fria. É a estratégia do medo, que passa por manipular a descrição da realidade para tentar manipular o original.
O mesmo Cavaco que gastou os seus dez anos de governo (1985-95) a atacar a lei fundamental do nosso regime por entendê-la contaminada pelo “coletivismo do 11 de Março” e por uma “indiscriminada estatização da economia” (discursos de 1988 e 1990) atreve-se hoje a dizer ser “este o pior momento para alterar radicalmente os fundamentos do nosso regime”. Foi, de facto, tudo quanto ele fez naqueles dez anos... Mas quais fundamentos? Nesta espécie de l'État c'est moi versão estrépito final cavaquista, este homem quer arrogar-se o direito de definir os fundamentos de um regime que ele imagina ser o seu: “participação na NATO”, “adesão plena à União Europeia e à zona euro”, “relação transatlântica” e CPLP. Que nos vendesse o seu imaginado consenso austeritário, a que ele não aceita que o PS se furte, nenhuma surpresa; invocar a CPLP, qualquer um daria de barato; mas... a NATO como fundamento da nossa democracia? Da Constituição, precisamente, nada! O documento básico que em qualquer democracia define os valores essenciais de uma comunidade e as metas que ela se propõe atingir nunca coube, é verdade, no imaginário de Cavaco. No de Passos, nem falemos, recordista que é de inconstitucionalidades, uma por cada Orçamento e grande número de leis!
Só nas ditaduras os chefes do poder executivo se autoatribuem poderes constituintes, confundindo vontade pessoal com vontade popular. Não haverá em Belém algum liberal de serviço que lhe ensine esta lição básica? Por mais que o pé de Cavaco lhe fuja para a sua velha chinela autoritária, ainda não chegámos lá! Desta velha queda das direitas portuguesas, desde Sidónio Pais (1917-18), pelo presidencialismo saiu agora isto: na primeira vez que o PS decidiu quebrar o cordão sanitário e falar à sua esquerda, o Presidente levanta-se como barreira (que se julga) intransponível contra a o Parlamento. Procuro na história democrática portuguesa precedente mais grave; não o encontro.
É por isso muito curioso que quem à direita desenha a seu bel-prazer os limites dentro dos quais é admissível governar e decidir é quem se manifestou sempre, desde 1976, contra a Constituição e não se cansa de exigir a sua reforma. A lista de paradoxos é infindável: que o CDS tenha votado contra a Constituição não o impediu de fazer parte de governos em Portugal em 12 dos 39 anos da sua vigência – mas que o PCP ou o BE se manifestem, por exemplo, contra a presença de Portugal na NATO (à qual a Constituição não obriga; pelo contrário: nela se prescreve que “Portugal preconiza (…) o desarmamento geral, simultâneo e controlado, [e] a dissolução dos blocos político-militares”) parece remeter o seu milhão de eleitores para um gueto político atrás de um cordão sanitário! Que um governo PSD-CDS tenha organizado em território português uma cimeira que reuniu três líderes (Bush, Blair e Aznar), logo antes de lançarem uma guerra que afrontou todo o direito internacional, não levanta quaisquer sobre a sua legitimidade para governar o país?
Cavaco acaba dez anos na presidência (e esperemos que a sua carreira política) com um estendal de argumentos casuísticos, de onde não sai lógica institucional alguma, como lhe têm chamado: é só puro cavaquismo. Antes, os governos, para serem eficazes, tinham de ser maioritários; agora, as maiorias relativas são perfeitamente suficientes, seja a oposição civilizada e aceitar com fair play uma tradição que ele julga valor superior ao da norma constitucional. Antes, era importante encurtar os prazos que a Constituição prescreve (lembre-se de toda a pressa com que o Governo Passos foi empossado por Cavaco em 2011); hoje, com Bruxelas a perguntar pelo Orçamento, não há problema algum que se perca meses neste processo, que Cavaco nomeie um governo que já sabe que será rejeitado na Assembleia, para nos atirar para o limbo logo a seguir. O homem que derrubou o Governo de coligação com Mário Soares mal Portugal assinou a sua entrada na CEE, em plena crise económica e financeira, hoje “[receia] muito uma quebra de confiança das instituições internacionais”.
É revelador que todos tenham interpretado o esotérico discurso de Cavaco como um apelo à dissidência entre os socialistas. Já viram? Cavaco, o homem que contava com a disciplina socialista em deixar passar governo e leis da direita, é hoje o campeão do jogo politiqueiro de quem quer ver se algum deputado socialista incumpre a decisão maioritária do PS de rejeitar um novo governo Passos. Não tarda muito e estamos a importar a tradição berlusconiana de comprar votos no Parlamento... E não foi o PSD que obrigou os candidatos do seu partido a assinar uma declaração em como abandonariam o lugar na AR em caso de votação contra a direção do partido em questões fundamentais?
Com quem, afinal, se preocupa o Presidente da República, quando tem de decidir sobre o novo governo dos portugueses? Quem considera ele ser titular de interesse legítimo sobre a condução dos negócios da polis portuguesa? “As instituições financeiras, os investidores e os mercados”, a quem ele quer “impedir que sejam transmitidos sinais errados”. É essa a sua comunidade de cidadãos. Não a dos portugueses comuns, os desempregados de longa duração, os jovens forçados a deixar o seu país, os milhões de ofendidos, roubados e maltratados, esses que, segundo António Barreto, “ao fim de quatro anos de austeridade estão 'apenas um pouco mais pobres' e 'mais rijos'” (RTP3, 22/10/2015). Foram eles que elegeram os seus representantes. E é entre estes últimos que cabe agora acordar a formação de um governo. Não ao Presidente eleito com menos votos em toda a nossa história democrática.
Creio que me não enganei ao longo de todos estes anos quando interpretei a devastação neoliberal e austeritária como um processo de transição para um novo regime, em rutura radical com um passado em que a democracia não se concebia sem justiça social, mesmo que, afinal, não tivesse sido mais o de um capitalismo minimamente limitado pela capacidade de controlo democrático da política económica. Cavaco, a direita, demasiada gente, vive já com este novo regime austeritário e de capitalismo de casino na cabeça. É por isso que quer agora acusar de intuitos revolucionários os que, com toda a legitimidade democrática, tentam retomar o caminho da democracia. Pura inversão da leitura histórica: é a direita que quer mudar o regime democrático, que quebrou o contrato social, que nunca aceitou a sua lei fundamental. Isso, sim, teria sido uma mudança de regime.