Incoerente, paroquial e falho de cultura política democrática

Se há coisa que Costa disse taxativamente, foi que não se aliaria à direita. Por que é que esta promessa é ostensivamente ignorada?

As tomadas de posição do Presidente aquando da indigitação de Passos Coelho como primeiro-ministro, indigitação essa que é em si mesma um ato perfeitamente normal e congruente com a teoria e a prática constitucional portuguesa, nomeadamente afirmando que não se deveria aceitar que o BE e o PCP/PEV tenham uma participação plena nos governos de Portugal, seja por causa das suas posições alegadamente “antieuropeístas” e “anti-NATO”, seja para não desagradar às instituições financeiras internacionais, seja ainda para não enviar sinais inapropriados aos mercados de capitais, são de uma enorme gravidade na história democrática do país e revelam incoerência, paroquialismo e falta da cultura política democrática. Vejamos porquê.

No Verão passado, o Presisente advogava, numa alocução ao país, as virtudes dos governos com apoio maioritário na AR. E citava os inúmeros casos na Europa onde há coligações com suporte maioritário. Ficava assim expresso o seu (aparentemente) desejo por uma solução maioritária. Porém, as eleições de 4 de Outubro geraram três factos inéditos. Primeiro, a direita coligada ganhou as eleições mas apenas com maioria relativa. Portanto, caso não consiga obter o respaldo de mais nenhum partido, ou partidos, na AR apenas pode governar em formato “coligação minoritária”; mesmo neste último caso, tal só será possível se o PS lhe der a aquiescência para tal. Note-se que, na história da democracia portuguesa, quando venceu a contenda a direita (coligada ou a solo) venceu sempre as eleições com maioria absoluta (1979, 1980, 1987, 1991, 2002, 2011), exceto em 1985 (uma situação extraordinária: fenómeno PRD; o pior resultado de sempre do PS), e por isso não colhem os “choradinhos” dos comentadores de direita de que se não deixarem agora a PaF governar em minoria esta nunca mais pode chegar ao poder. Se há alguma força que tem sido prejudicada pelo sistema de alianças vigente até 4 de Outubro, essa força é o PS! A segunda novidade dos resultados de 4 de Outubro é que a direita ganha com maioria relativa mas as esquerdas todas juntas têm maioria absoluta. Tirando 1985, tal nunca tinha acontecido. Mas o terceiro ponto inédito, e que é o mais importante, é que as esquerdas não só somam uma maioria absoluta como estão, pela primeira vez, dispostas a converter essa dominância numérica numa maioria de governo. Já tinha havido várias maiorias relativas do PS, as quais, somadas aos deputados da esquerda radical, davam maioria absoluta (1976; 1983; 1995; 1999; 2009). Porém, nestes casos sempre o PS se aliou à direita para governar e portanto nunca a maioria parlamentar de esquerdas, que existiu nesses vários momentos, foi convertida em maioria de governo. Só agora os líderes políticos dos partidos de esquerda expressam uma vontade clara de fazer tal conversão. Alguns têm argumentado que a arquitetura constitucional portuguesa foi desenhada para permitir governos minoritários. É verdade. Todavia, por um lado, não há nada de definitivo nisso: foi assim porque se sabia que os socialistas tinham, nos tempos da Guerra Fria, muita dificuldade em se entender com o PCP; as direitas, por outro lado, nunca precisaram disso, sempre se soube entender para governar (1979-1983, 2002-2005, 2011-2015). Os socialistas e a alternância política democrática eram os grandes prejudicados: tirando o caso de 2005-2009 (única maioria absoluta do PS), os socialistas governaram sempre apoiados na direita; a alternância era, pois, sempre limitada e parcial (!): a direita perdia as eleições mas ficava sempre a influenciar os governos do PS... É isso que pode mudar agora, e é por isso que o Presidente, a maioria de direita e os seus apaniguados nos mass media estão tão aflitos: pela primeira vez na história democrática do país, a alternância da direita para a esquerda poderá ser completa; e se tal funcionar bem, inaugurará uma nova era. É óbvio que, num sistema parlamentar e/ou semipresidencial, os eleitores não escolhem diretamente o Governo, por muito que perversões da “Constituição material” possam apontar nesse sentido, e, por isso, a conversão de uma maioria relativa numa maioria de governo carece sempre da mediação de partidos e deputados no Parlamento. É tudo perfeitamente legal e democrático e congruente com as melhores práticas na Europa e no mundo, tirando os regimes presidenciais (onde os votantes elegem diretamente o executivo). Tudo aponta para que o líder do PS seja capaz de chegar a entendimento com os partidos à sua esquerda e, portanto, seja capaz de propor ao Presidente uma alternativa maioritária e com maior horizonte de estabilidade do que a PaF. Todavia, o Presidente, que antes dizia prezar acima de tudo a estabilidade e as soluções de governo com apoio maioritário, agora já parece preferir governos de minoria. Importante mesmo é que o seu partido esteja presente…. Total incoerência, portanto, e ainda por cima ideológica e partidariamente conveniente.

Nos tempos da Guerra Fria, a participação das esquerdas radicais, sobretudo em associação com os sociais-democratas, em governos democráticos da Europa Ocidental só tinha ocorrido em três países: Finlândia, Islândia e França. Todavia, depois de 1989 a participação das esquerdas radicais (comunistas, pós-comunistas reformados, alianças verdes-vermelhas, “socialistas de esquerda”, etc.) nos governos dos países democráticos da Europa Ocidental generalizou-se (ver Freire, André Crise e transformação nas esquerdas europeias, antes e depois do fim dos regimes do “socialismo realmente existente” (1989-1991), in O Fim da URSS, a Nova Rússia e a Crise das Esquerdas, Colibri, 2013). Nesta linha, temos tido na Europa Ocidental democrática muitos governos dos sociais-democratas com a esquerda radical (e até a esquerda radical em “governos arco-íris”): em Chipre, na Dinamarca, na Finlândia, em França, em Espanha, na Grécia, na Irlanda, na Islândia, na Itália, na Noruega e na Suécia. E não consta que estes países tenham deixado de ser democracias, que tenham abandonado a UE, ou ainda que tenham abandonado os seus tradicionais alinhamentos em termos de blocos político-militares. Ou quererá Cavaco dar lições de democracia e de europeísmo a estes países? Aliás, os aparentes receios de Cavaco revelam, por um lado, um enorme desconhecimento da teoria e prática das coligações em democracia (nestes casos, o programa comum não é uma soma dos programas dos partidos constituintes, é um compromisso comum em que os maiores partidos pesam mais do que os partidos mais pequenos) e, por outro lado, revelam fraco conhecimento da história (em muitos dos países em que os sociais-democratas se coligaram com a esquerda radical, por exemplo na Escandinávia, amiúde os primeiros votavam com a direita em certos temas da política externa e/ou da administração interna, apesar dos “governos de esquerdas”).

Alguns comentadores têm avançado a ideia de que, apesar de ser legal e constitucionalmente aceitável uma maioria de governo de esquerdas liderada pelo PS, ainda que a PaF tenha ganho as eleições com maioria relativa, o problema é de legitimidade substantiva. Nomeadamente, porque a solução “Governo de esquerdas” não teria sido claramente colocada aos eleitores antes de 4 de Outubro. Por um lado, há que reconhecer que tal não foi colocado com total clareza: os ataques ao PS na campanha, por parte de BE e de PCP/PEV, foram mais frequentes do que as aproximações. Porém, por outro lado, houve também vários sinais em sentido contrário: Costa sempre disse que não concordava com a ideia de “partidos do arco da governação”; e a esquerda radical, sobretudo o BE, fez propostas inesperadamente pragmáticas para um entendimento governativo com o PS. Mais: se há coisa que Costa disse taxativamente, foi que não se aliaria à direita. Por que é que esta promessa é ostensivamente ignorada? Acresce ainda que, sucessivos inquéritos (2009, 2012, 2014) têm relevado que os eleitores do PS, do BE e do PCP/PEV são maioritariamente a favor de entendimentos do PS à esquerda (ver Freire, André, & Lisi, Marco (2016), The Portuguese Radical Left and the Great Recession: Between New Challenges and Old Responses, in Luke March & Daniel Keith (eds.), Europe's Radical Left: From Marginality to Mainstream?, London,  Rowman and Littlefield). Finalmente, é verdade que, nos tempos da Guerra Fria, Mário Soares foi sempre contra uma aliança com os comunistas. Mas a história não acabou em 1989, e desde então Soares tem sido um dos mais fortes proponentes de alianças do PS com os partidos à sua esquerda.

Politólogo, professor do ISCTE-IUL

E-mail: andre.freire@meo.pt

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