Há soluções para acabar com quotas que sobrevivem aos militantes

Actuais e antigos dirigentes avançam com propostas: pagamento presencial, criação de uma referência única para pagamento multibanco ou, pura e simplesmente, acabar com as quotas.

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Eleições nas federações do PS reacenderam debate sobre quotas Nelson Garrido

Por ironia do destino, na próxima semana, o também presidente da Comissão de Fiscalização Económica e Financeira do PS, terá de virar a sua atenção para a sua terra natal. Vila Nova de Famalicão é uma das localidades onde foram detectadas “situações dúbias” no processo de pagamento de quotas. Quotas pagas a militantes já falecidos, socialistas surpreendidos por receberem recibos de pagamentos que não efectuaram. Sem que se saiba ainda quem foi que pagou, e para quê. O passado sugere que o caciquismo voltou a vir à tona na cidade dos bispos.

Foi o próprio Domingues Azevedo quem confirmou ao PÚBLICO que vai convocar uma reunião da comissão a que preside para avaliar as denúncias feitas pelo presidente da Comissão Organizadora do Congresso (COC) federativo de Braga. Apesar de não ter sido “notificado oficialmente”, o contabilista confirmou estar “a par da situação”. António Ramalho, que preside à referida COC, disse ao PÚBLICO ter remetido, na passada terça-feira, o processo à comissão de 13 elementos.

A polémica das quotas pagas por atacado, em vésperas de eleições internas, estalou esta semana em Braga. Suspeitas de que alguém estaria a pagar quotas a militantes para  influenciar o resultado eleitoral. “Este tipo de questões costuma levantar-se em eleições mais renhidas”, recorda o politólogo André Freire, que acrescenta ainda que o fenómeno se detecta nas estruturas intermédias e locais dos partidos: “Quando o universo eleitoral é mais pequeno, é mais facilmente manipulável.”

Nesta disputa pelas federações socialistas, veio também a público a intervenção de dois militantes em Coimbra que avançaram com uma providência cautelar para suspender as eleições, devido à suspeita de “cadernos eleitorais falseados”. Um caso que remonta a 2011, quando a militante Cristina Martins denunciou e depois entregou no Ministério Público, dados sobre centenas de casos de inscrições no PS com moradas ou locais de trabalho falsos.

No caso de Braga, a regularização anormal de quotas está relacionada com a obrigatoriedade do militante ter as quotas em dia para poder votar. O que, na opinião de muitos, potencia o poder dos caciques locais nestes processos eleitorais.

O PÚBLICO tentou perceber como é que, aparentemente, é tão fácil que o fenómeno se verifique. Depois de alguns contactos, ficou claro que existem soluções técnicas e até políticas para enfrentar o problema.

Uma das três formas de se pagar uma quota é através do multibanco ou de transferência bancária. Para tal, é necessário um número de referência, que no PS, está definido de forma bastante primitiva: “Coloca-se da esquerda para a direita o número de zeros necessário para que fique evidente o número de militante numa referência com nove dígitos”, explicou ao PÚBLICO um experiente socialista nestas lides da organização partidária. O que quer dizer que “qualquer dirigente partidário, seja local ou regional, que tenha acesso a uma listagem de militantes, que tem incluído o número de cada militante, fica capacitado para fazer o pagamento”.

Todos os actuais e antigos dirigentes socialistas reconheceram a situação como “um problema”. “Este tipo de situações fazem com que as pessoas não se revejam nos partidos”, admite João Tiago Silveira, que foi secretário de Estado e porta-voz do PS durante a liderança de José Sócrates. Mas o jurista faz questão de frisar a sua convicção  de que, “em regra”, as eleições internas no PS “são livres e justas”. “O que não quer dizer que não se registem episódios evitáveis e que o partido não faça um esforço para os evitar”, acrescenta.

No entanto, o actual secretário nacional do PS, Álvaro Beleza, é mais assertivo. Considera este tipo de fenómenos a manifestação nefasta do “caciquismo” no interior dos partidos. André Freire, que tem vários estudos publicados sobre as atitudes e os comportamentos dos eleitores, as instituições políticas e a representação política, reconhece que o pagamento de quotas por atacado é um “problema para a democracia interna de um partido”.

O investigador avança com duas propostas para enfrentar o caciquismo. Antes de mais,  um requisito simples: “O pagamento presencial [pelo próprio militante] já ajudava.” E depois uma “solução” de maior alcance que passasse por “criar mecanismos de fiscalização cruzada, mas com poder e capacidade de extrair consequências”. Uma referência clara à denúncia feita pela COC de Braga, que até ao momento não teve qualquer resultado prático.

Quotas só para dirigentes
O deputado André Figueiredo, que fez parte da direcção nacional do PS quando José Sócrates o liderava, avança também com uma solução técnica, que chegou a ponderar quando tinha responsabilidades. “O que a sede nacional poderia fazer para se proteger disto, seria, no programa informático inerente a este serviço [pagamento de quotas], logo no início do ano, criar uma aplicação que atribuísse um conjunto de dígitos de forma aleatória a cada militante, que depois seguiria para esse militante. Dessa forma, apenas este teria acesso ao número de referência necessário para fazer o pagamento”, explica. Uma solução exequível, garante Figueiredo, depois de ter consultado um conjunto de empresas de IT em 2011. “Só não se avançou com isso na altura porque entretanto perdemos as legislativas e demitimo-nos da direcção”, acrescentou.

Álvaro Beleza tem uma proposta mais radical. “No futuro tem que deixar de ser obrigatório o pagamento de quotas para se participar numa eleição interna”, defendeu ao PÚBLICO depois de o ter assumido também há dias no Diário de Notícias. Uma forma, sustenta, de retirar poder aos “jagunços” locais mas também de fazer com que “cada vez mais gente participe”. Quotas em dia, rematou, só deveria ser exigido para se “ser candidato pelo PS ou seu dirigente”.

João Tiago Silveira não concorda: “Essa proposta não vai à raiz do problema.” E o problema identificado pelo ex-secretário de Estado é o da ostracização dos partidos em relação aos cidadãos. Uma maior “ligação à sociedade” faz com que um partido “seja menos permeável a esse tipo de situações”, avalia. Por isso, defende as medidas que apresentou em carta aberta ao partido no último congresso. Abrindo o partido aos simpatizantes, com a sua inclusão nos órgãos internos e até permitindo que estes avancem com propostas a um Congresso. Ou com “processos do tipo orçamento participativo” na elaboração de um programa eleitoral.

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