Há "factos anómalos" na lei contra a corrupção, denuncia Cravinho

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O ex-ministro socialista faz duras críticas às medidas tomadas contra a corrupção, como resposta às suas propostas, que o PS rejeitou Filipe Casaca/PÚBLICO

O entretanto criado Conselho para a Prevenção da Corrupção é, para o ex-ministro das Obras Públicas de António Guterres, "uma entidade de forte pendor governamental" em que alguns membros "vão ser juízes em causa própria", como disse ao Diga Lá, Excelência, programa do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2.

Que avaliação faz da corrupção em Portugal?

Há evoluções positivas e negativas. Muito positivo é o facto de a modernização da administração pública, o Simplex, ter dado uma estrutura mais organizada e ter feito com que a corrupção burocrática e administrativa, a pequena corrupção, tenha diminuído com muito significado em alguns sectores, desde a administração fiscal, algumas câmaras municipais. Estamos a falar daquele dinheiro para fazer andar os pequenos processos mais depressa. Mas, na grande corrupção de Estado, toda a gente tem a sensação que estamos numa situação muito complicada e em crescendo.

Porquê?

Porque a grande corrupção considera-se impune e age em conformidade e atinge áreas de funcionamento do Estado, que afectam a ética pública.

Estamos a falar dos grandes contratos?

Sim, os grandes contratos são um caso claro em que existe essa sensação. Tenho notado que fazedores de opinião dos mais variados quadrantes escrevem, preto no branco, que chegámos a uma situação em que está em perigo a autoridade do Estado e a dedicação ao interesse público. E toda a gente aceita essas expressões, ninguém se ofende. Falo com muita gente, advogados, economistas, que dizem que isto está a atingir proporções em alguns grandes negócios que são suspeitos... E alguns deles estão a ser investigados, como o dos submarinos.

O que acha do recém-criado Conselho para a Prevenção da Corrupção (CPC) ficar na dependência do Tribunal de Contas (TC) e não da Assembleia da República, como defendia?

O problema não é só da dependência. Eu olho para aquele CPC e penso que nem sequer é uma cereja em cima do bolo, porque não há bolo, não há cereja, não há nada. É evidentemente uma entidade de forte pendor governamental. Tem oito elementos e só três é que têm um estatuto intrínseco de independência. Três são inspectores-gerais, que por lei são dependentes do Governo.

Mas é pelo TC que passam uma série de contratos do Estado.

O problema não é a unidade estar junto do TC. E isto é tão flagrantemente óbvio que me espanta como é possível que tenha passado sem que ninguém o dissesse: a própria independência do TC não é favorecida pelo facto de ter o presidente a presidir a uma comissão que é de pendor governamental, obviamente. Depois, para um problema tão complicado, profundo e complexo como a corrupção, este conselho é constituído por gente que vai a sessões e mais nada. Não tem ninguém a tempo integral ou parcial. Vão a sessões por inerência como vão a dezenas de outras e ganham uma senha de presença.

Mais grave: os inspectores-gerais são juízes em causa própria e isso é gravíssimo. As inspecções-gerais, como toda a administração pública, precisam de ser fiscalizadas. Imagine que lá no conselho alguém quer fazer um exame sério às três que estão ali sentadas. Acha que isto é possível?

Depois, os recursos humanos são fixados por portaria do Governo e toda a gente sabe e se queixa, com a Procuradoria-Geral da República em primeiro lugar, que não há meios para lutar contra a corrupção. Com esta coisa extraordinária: para uma tarefa que exige pessoal altamente qualificado, as pessoas têm que ser recrutadas na bolsa da mobilidade da função pública. E eu podia continuar...

Assume como uma derrota pessoal o facto de o sistema de combate à corrupção que deixou no Parlamento não ter sido aprovado?

Sim, assumo essa derrota como um soldado no campo de batalha que combateu mas foi derrotado pelo inimigo.

Quem é o inimigo?

Esse é que é o problema. Temos que ver que este tipo de actividade não é meramente legislativa e não existe uma receita única. O que me apercebo é que, mesmo ao nível do processo legislativo, há um condicionamento tal que faz com que as medidas essenciais não sejam tomadas. E mesmo quando se tomam medidas, aparecem factos anómalos na própria legislação nova que são difíceis de entender. Vou dar-lhe um exemplo na Lei 19/2008, que tem o que resultou dos meus primeiros pacotes de uma forma bastante restrita.

Estava convencido de que uma das medidas que tinha sido adoptada era o registo das procurações irrevogáveis. E dei de barato que assim tinha sido feito. Um dia destes, ao ver a legislação mais uma vez, caem-me os olhos sobre o artigo primeiro, vi lá uma palavra e achei: "que coisa esquisita". Então, foi adoptado de facto a obrigatoriedade de registo das procurações irrevogáveis só para os imóveis. O que é que sucede? Carteiras de títulos, dinheiro, contas bancárias, obras de arte, activos financeiros, off-shores... tudo isso pode ser alvo de procurações irrevogáveis. Alguém convenceu o legislador que o problema estava nos imóveis e o legislador aceitou essa interpretação sem ver que, ao mesmo tempo que fixava os imóveis, abria 30 portas onde a corrupção podia continuar a fazer tranquilamente a sua vida.

E foi derrotado por quem?

O meu grupo parlamentar tomou uma posição muito clara que não estava de acordo com as minhas propostas, no uso de poderes que são os seus. E afirmou isso com toda a clareza. Portanto fui derrotado por todos aqueles que não concordaram comigo. Isto não tem nada de extraordinário. O que é importante é saber se as ideias em si mesmo, o seu conteúdo, se não deveriam ter tido outra sorte.

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