Esmiuçando as razões do Tribunal Constitucional
Os juízes não pediram uma reforma melhor em vez de uma reforma imperfeita – pediram o impossível para recusarem o necessário.
Havia, contudo, uma novidade: a deliberação de inconstitucionalidade fora tomada por unanimidade. Explicaram-me então que isso talvez tivesse sucedido por o acórdão ser mais equilibrado do que algumas das anteriores deliberações do Palácio Ratton. Para evitarem divisões, os juízes teriam encontrado uma espécie de terreno comum que teria a virtude de abrir portas a formas alternativas de correcção das injustiças do sistema de pensões. Foi por isso com alguma esperança e uma pitada de cepticismo que fui ler a longa deliberação. A minha desilusão foi total. Custa-me dizê-lo, mas não creio que os juízes tenham pedido uma reforma melhor em vez de uma reforma imperfeita – os juízes pediram o impossível para recusarem o necessário.
Recordemos o que estava em causa: saber se é ou não possível reduzir pensões em pagamento por razões de sustentabilidade do sistema de Segurança Social e de justiça intergeracional e intrageracional. Os argumentos são conhecidos. Antes do mais, a manutenção dos actuais níveis de pensão na CGA exige uma transferência anual de 4,5 mil milhões de euros do Orçamento do Estado, pois é esse o défice do sistema. Depois, o esforço em contribuições, em impostos e em dívida que está a ser pedido aos mais novos é desproporcional face ao que estes poderão vir a receber do sistema. Por fim, um pensionista da CGA recebe, para uma carreira contributiva comparável, 10% a 30% mais de pensão do que um pensionista do regime geral.
O que nos veio então dizer o Constitucional? Primeiro, que é possível reduzir o montante de pensões já em pagamento. Não é uma novidade, já estava em anteriores acórdãos. Depois, que para reduzir essas pensões é necessário cumprir um conjunto alargado de condições. Por fim, que preencher essas condições é impossível.
Ao contrário do que sucedeu em anteriores ocasiões, desta vez o Governo enviou para o tribunal todas as justificações possíveis. São quase 20 documentos diferentes que incluem estudos económicos, pareceres jurídicos e exemplos de jurisprudência internacional. Não era agora possível aos juízes invocarem, como invocaram em anteriores acórdãos, que a emergência económica não estava devidamente explicada. Mesmo assim isso não foi suficiente para suscitar alguma razoabilidade à maioria dos juízes (e digo maioria porque, apesar de tudo, houve dois que também votaram pela inconstitucionalidade, mas com um argumento razoável e facilmente corrigível, o da fasquia a partir da qual ocorriam os cortes, 600 euros).
O que é que os juízes se empenharam em demonstrar? Antes do mais, que a medida não visava a sustentabilidade da Caixa Geral de Aposentações, pois esta será sempre insustentável, uma vez que desde 2005 deixou de admitir novos beneficiários. Acontece, porém, que a medida tomada em 2005 visava a convergência dos dois sistemas de Segurança Social, isto é, inseriu-se no mesmo esforço de criação de um sistema de pensões único em que também se inseria o diploma chumbado. Se não tivesse sido tomada, o sistema continuaria a ser insustentável, talvez ainda mais insustentável. Por isso, o que estava em causa nunca foi a sustentabilidade pura e simples da CGA, que é inalcançável, mas a sustentabilidade das contas públicas, ou seja, saber se o esforço de solidariedade pedido ao conjunto dos contribuintes é em si mesmo sustentável face aos níveis de despesa e de défice que o Estado português tem. Este tema é totalmente ignorado no acórdão.
Há mesmo momentos de cinismo no acórdão, quando, por exemplo, este refere a hipotética transitoriedade da medida para defender que isso contrariaria a intenção de dar sustentabilidade ao sistema. É sabido porque é que o Governo incluiu essa norma de transitoriedade: para ir ao encontro do sentido de anteriores acórdãos. É também sabido que, havendo os níveis de crescimento e de défice previstos nessa cláusula, o sistema asseguraria a sua sustentabilidade sem necessidade do sacrifício das pensões em pagamento. Mesmo assim os juízes não resistiram à maldade de incluir uma referência a este ponto, numa demonstração de que, como diz o provérbio, chumbariam por ter cão e chumbariam por não ter. Isto é, chumbariam sempre.
Mas o argumento central dos juízes foi o de que esta reforma não era “sistémica”, uma vez que afectava apenas uma das parcelas do sistema, a da CGA. E isso, acrescentam, geraria novas injustiças, uma vez que, mesmo reconhecendo a existência de situações mais favoráveis entre os pensionistas da função pública, há também situações injustas no regime geral da Segurança Social. Em apoio destas teses os juízes citam repetidamente um artigo académico de um professor de Coimbra, João Carlos Loureiro, que também fui ler. Acontece, porém, que os exemplos que citam são escassos e muito localizados, podendo abranger, segundo os especialistas, apenas um a dois em cada cem reformados do regime geral. Não estou a dizer que essas iniquidades não existem – estou a dizer que têm uma dimensão infinitamente mais pequena que a grande iniquidade gerada por a maioria dos reformados da função pública ter beneficiado de uma fórmula de cálculo da sua reforma muito mais favorável do que a fórmula aplicada à esmagadora maioria dos pensionistas do regime geral.
A opção dos juízes foi pois a de invocarem pequenas injustiças para contrariarem a correcção de uma injustiça maior e, ao mesmo tempo, pedirem a lei perfeita e imaculada que é materialmente impossível de concretizar. Basta pensar que algumas das pequenas injustiças que evocam só poderiam ser corrigidas caso a caso, pensionista a pensionista, num processo que não deixaria de inundar os tribunais e duraria para lá do tempo de vida de muitos dos beneficiários.
Mais: a solução “sistémica, estrutural”, que o tribunal pede, ou sugere, é virtualmente impossível de alcançar numa democracia moderna, onde as decisões são sempre parcelares, pois implicam compromissos e gradualismos. Para além disso, um sistema de pensões tão complexo como nosso, onde coabitaram tantos sistemas e regras diferentes, não é unificável sem criar algum tipo de injustiça para este ou aquele grupo de beneficiários – o que significa que, no limite, nunca o tribunal aceitará qualquer mudança, se não for capaz de fazer aquilo que agora se recusou a fazer: balancear os ganhos e perdas de justiça relativa e optar não pela perfeição, mas pela moderação.
Sei que, no Governo, se estudam formas de reapresentar uma lei mais “sistémica”, mas olho para esses esforços com um duplo pessimismo. Primeiro, porque não creio que seja possível encontrar soluções milagrosas em poucos dias ou semanas. Depois, e, sobretudo, porque da minha leitura do acórdão não consigo retirar – mesmo de algumas passagens mais crípticas – qualquer sinal de abertura a uma mudança, antes retiro a convicção de que a maioria dos juízes encontrará sempre argumentos para barrar qualquer iniciativa neste domínio.
O ponto central, como Vital Moreira notou num conjunto de notas que publicou no blogue Causa Nossa, não é saber se existe ou não tutela da confiança, é antes dar-lhe um valor absoluto “sem paralelo na jurisprudência constitucional comparada”. E a questão nuclear, aquela que o TC se recusou a considerar de forma ponderada, é que, como também escreveu o constitucionalista e eurodeputado pelo PS, “o excesso de segurança para alguns traduz-se num défice de equidade para os demais”. Ora a equidade até é mais um valor de esquerda do que a segurança, mas nem parece…
Jornalista, jmf1957@gmail.com