Deus, Pátria?, Autoridade
Desde há 12 anos, pelo menos, apontaram todas as baterias ao Estado social.
Há dias, José Pacheco Pereira (J.P.P.) escreveu nas páginas do PÚBLICO que "a direita deixou de ser patriótica". O argumento é interessante, não tanto porque me pareça correto dizer que a direita terá sido historicamente patriótica para agora deixar de o ser, mas mais pela perceção de que o plano que os "próceres 'neoliberais”' do PSD têm para Portugal não é mais do que a "subordinação, à revelia da democracia, da nação e da pátria, a uma estrutura de poder que foi 'comunitária' e é hoje antidemocrática, hierárquica e imperial e que se chama União Europeia" (J.P.P., PÚBLICO, 5.7.2014).
Este artigo de J.P.P. é dos que melhor ilustram a sua trajetória política e intelectual dos últimos anos, em choque frontal com quem hoje gere a direita para onde se ele transferiu, como tantos outros, vindo do maoísmo, há já mais de 30 anos. E diz muito dos efeitos que a devastação neoliberal também ali produz. A minha intenção não é aqui abrir polémica com ele, mas, em todo o caso, discutir se terão sido patrióticas as direitas portuguesas. É que do Deus, Pátria, Autoridade salazarista, o elo mais fraco era na Pátria que estava.
Antes de mais, as direitas tenderam a definir-se como patrióticas por acharem que a revolução, os projetos de mudança, vinham sempre de fora. Pelo contrário, a tradição seria portuguesa. Apesar de (quase toda ela) católica, a direita portuguesa não podia deixar de seguir no séc. XIX a tendência profunda da contemporaneidade: perante a laicidade inevitável, que impedia usar a religião como cimento ideológico de sociedades modernas feitas de diversidade e de discordância, as elites conservadoras tentaram substituí-la por uma Nação sacralizada. Isso fez com que a direita em Portugal se descobrisse especificamente portuguesa depois de, contra todas as dissidências, ter brandido valores que se reivindicavam universais, como os do catolicismo e do tradicionalismo organicista, e que nada tinham de especificamente português. E, para descrever a reivindicação da mudança como algo exógeno, acusou sempre as esquerdas de serem portadoras de valores estrangeiros: os miguelistas diziam que vintistas e setembristas eram uns estrangeirados afrancesados; monárquicos e católicos achavam (e acham ainda hoje) que os republicanos não passavam de jacobinos sobreaquecidos; Salazar denunciou “o internacionalismo” que os comunistas lançavam “contra a Pátria”, e, até à vitória aliada de 1945, achou que britânicos (e norte-americanos) aspiravam ao “domínio estrangeiro contra a independência da Nação” (prefácio a Discursos de Notas Políticas, 1943), e, vendo-os aliados da União Soviética contra a Alemanha nazi, denunciou o risco do “triunfo do comunismo” pela mão deles (telegrama diplomático a Armindo Monteiro, 1941); nos anos 1960, a guerrilha africana, o movimento estudantil e o catolicismo progressista eram para ele puras emanações de Moscovo, talvez até de Washington e de Pequim, e de modas estrangeiras; Sá Carneiro e Freitas do Amaral (depois de Salazar e Caetano, e, já agora, Mário Soares e a extrema-esquerda maoísta) acusaram o PCP de não ser mais que o braço de Moscovo...
As direitas que representam classes dominantes de economias periféricas do sistema capitalista têm, contudo, um problema com a retórica nacionalista: em pequenos estados, submetidos à hegemonia de uma ou mais grandes potências, regionais e/ou mundiais, podem elas prescindir, ou até confrontar, a dominação económica e político-militar que essas potências, por conveniência própria, lhes impõem? Podem as direitas latino-americanas, por mais nacionalistas que se proclamem, confrontar os EUA? Podem as portuguesas, podia Salazar? E hoje, podem elas confrontar os donos da UE, ou os do FMI? Porque haveriam de o querer fazer?
O caso do salazarismo é particularmente revelador: perdida em 1943-45 a possibilidade de jogar entre nazis e anglo-americanos, Salazar engoliu toda a sua retórica antiamericana e o seu desprezo pelos "ingleses, esse povo de comerciantes", como lhes chamava, e seguiu quem mandava no Ocidente: os EUA na OECE, no Plano Marshall e na NATO, os britânicos na EFTA, isto é, na única Europa que lhe era acessível. A modernização autoritária salazarista associou-se, quer na industrialização e na constituição dos grandes grupos económicos portugueses, quer nos grandes investimentos coloniais, aos mesmos grandes interesses internacionais que, ontem como hoje, não deixam de tratar o capital e o Estado português como pouca coisa – e os portugueses como menos ainda. Se quiser conservar poder e sobreviver, não pode prescindir destes interesses. É da natureza das direitas de estados periféricos submeterem-se ao centro dessa periferia, poderem dizer-se partícipes dos grandes desígnios arquitetados no topo do mundo. Se o não fizessem, o seu projeto de sociedade não vingaria, dificilmente sobreviveria. Foi assim que, tornado definitivo o fim do império, as direitas (e o PS, como bem o diz J.P.P.) procuraram uma nova articulação com o centro da economia-mundo capitalista, a começar por uma integração europeia que obrigasse a desmantelar, por imposição de Bruxelas, a herança revolucionária de 1974-76. E que desde há 12 anos, pelo menos, apontaram todas as baterias ao Estado social.