Desunião das esquerdas: entre as elites desavindas e as eventuais soluções

Este é hoje o nó górdio de qualquer reforma do sistema político: trazer para o sistema de tomada de decisão ao nível dos governos os cerca de 20% dos eleitores da esquerda radical que têm estado sempre excluídos dos mesmos.

Nos tempos da Guerra Fria, Portugal não era uma exceção no contexto europeu (André Freire in Pedro Aires Oliveira, coordenador, O Fim da URSS, a Nova Rússia e a Crise das Esquerdas, Lisboa, Colibri, 2013). Todavia, após 1989, tal desunião das esquerdas passou a ser um (quase) excecionalismo português (idem, ibidem). Vale a pena revisitar os episódios mais recentes da desunião das esquerdas em Portugal para esmiuçar algumas das suas causas e perspetivar eventuais vias de superação do bloqueio.

Os episódios mais recentes da desunião não começaram aquando da recusa do BE de uma aliança pré-eleitoral, para as europeias de 2014, com o Manifesto 3D (Dignidade, Democracia e Desenvolvimento), a Renovação Comunista (RC) e o Partido Livre (PL). Na verdade, a genealogia recente da desunião começou nas autárquicas de 2013. Na preparação destas, em finais de 2012, a direção do PS enviou uma carta pública às direções do PCP e BE propondo entendimentos nas autárquicas. O PCP recusou com o argumento de que não fazia sentido coligar-se com um partido que tinha o posicionamento que tinha face às políticas da troika. O BE disse que sim, desde que o PCP também alinhasse. O PCP deu-se bem na sua estratégia de partido de protesto (e com uma notável ancoragem autárquica), o BE não. Tal como o BE já não se tinha dado bem em 2009, vide por exemplo o caso de Lisboa, o que só prova que o problema não é da liderança bicéfala (aconteceu o mesmo nos tempos de Louçã), é um problema de o BE querer mimetizar o PCP. De qualquer modo, a fragilidade dos argumentos aduzidos pelo PCP para recusar alianças com o PS (a roçar o puro tacticismo) ficou evidenciada em Loures: em 2013, tendo ganho a câmara com maioria relativa, o PCP não hesitou em coligar-se com a direita para fazer maioria.

Claro que o PS também não ajuda para a concretização de alianças à esquerda. Por um lado, porque sempre foi um dos partidos mais centristas da família socialista europeia. Por outro lado, porque, apesar da devastação criada pelo Governo mais neoliberal de sempre em termos de desinvestimento na escola pública, de estrangulamento financeiro das universidades públicas, de desinvestimento e favorecimento na ciência, de dificultação do acesso à saúde, de cortes nas prestações sociais e nas remunerações de servidores públicos e reformados, etc., a preferência de alianças no PS continua a ser com a direita. Esta postura é tanto mais problemática quanto esta governação está assente num monumental embuste eleitoral e num constante afrontamento da Constituição. Tudo isto suporia, portanto, uma maior aproximação entre as esquerdas. Mas não. Por um lado, o PS mantém as suas preferências pelas alianças à direita. Por outro lado, a esquerda radical continua a apostar nas questiúnculas para justificar o facto de nunca se conseguir entender. Vejamos alguns exemplos recentes de tais questiúnculas.

Há umas semanas atrás, por iniciativa do 3D, foi proposta ao BE, à RC e ao PL a formação de uma lista conjunta para concorrer às europeias de Maio de 2014 e, posteriormente, dar-lhe continuidade nas legislativas de 2015. Os objetivos seriam os de "reverter um 'ciclo infernal' de austeridade, abrir caminho nas eleições europeias e prosseguir com o objetivo de evitar um futuro governo de bloco central em Portugal". É sabido que, apesar da concordância tácita das outras forças, o BE recusou uma qualquer solução que não fosse uma lista sua, mas englobando independentes dos outros movimentos e excluindo, naturalmente, o PL (PÚBLICO 28-1-2014). Pelo meio, a ex-deputada Ana Drago demitiu-se da comissão política do BE alegando para tal que "um modelo de articulação não chegou sequer a ser equacionado – a direção política do Bloco de Esquerda não se mostrou disponível para iniciar um debate programático com alguns dos possíveis participantes nessa convergência (via Expresso online)." E disse ainda que, "se não for com estes atores [3D, RC e PL], não se fará convergência com ninguém — e o Bloco fica sem qualquer estratégia de alargamento e convergência”, além de que, segundo ela, a unidade da esquerda é “urgente” e deve “ser mais ampla” (PÚBLICO online).

Da parte daqueles que, no BE, se reviram nas razões do partido para o abortar do processo, os argumentos mais substantivos (para justificar o fracasso de uma lista de esquerdas ao PE 2014) foram aduzidos por Fernando Rosas (F.R.), no PÚBLICO (30/1/2014), e José Manuel Pureza (J.M.P.), no DN (31/1/2014). Ambos começam por enaltecer a ideia de unidade das esquerdas. Porém, terminam com as habituais reservas. Por exemplo, diz-nos F.R.: "Não vejo como podem coexistir na mesma convergência os que defendem uma Europa federal (o PL, entenda-se) e um governo europeu com os que, como o Bloco, recusam essa perspetiva em nome da democracia na Europa e da soberania dos Estados." Mas haverá apenas um modelo de federalismo? Não seria possível defender um federalismo mais alinhado à esquerda defendendo nomeadamente alguma uniformização fiscal e da proteção social, para evitar os dumpings e a "corrida para o fundo" pelos mínimos sociais e fiscais, como, aliás, sugere Robin Blackburn na revista Manifesto, n.º9, de 2005? No fundo, o que estas alegações sugerem, tal como as de J.M.P., é que o BE está disponível para entendimentos à esquerda desde que as outras forças convirjam com as posições dele. Mas o espírito do compromisso democrático não implica precisamente a aproximação de posições divergentes em plataformas comuns? Não parece haver aqui muito interesse em aproximações (recíprocas) das posições das partes… Um déjà vu que já conhecemos das usuais estratégias do PCP...

E não se pode mudar o statu quo? É verdade que é difícil e os resultados não são garantidos, mas há algumas vias. Estas são complementares e, para uma maior eficácia, devem mesmo acumular-se. Primeiro, a formação de um partido que se apresenta a sufrágio com a ideia de promover o entendimento entre as esquerdas como um dos pontos centrais da sua agenda, como é o caso PL. Se for bem-sucedido eleitoralmente (e o oposto ocorrer aos seus competidores que rejeitam tal estratégia), tal poderá abrir o caminho à unidade das esquerdas. Segundo, uma cisão de esquerda no PS que desse origem à formação de um novo partido, uma espécie de "socialistas de esquerda", capaz de desencadear um realinhamento eleitoral e partidário na esquerda portuguesa: improvável porque, ao contrário de outros países, as vozes críticas da chamada "ala esquerda" na "hora h" parecem pensar mais nas suas carreiras do que nos seus constituintes... Terceiro, uma reforma do sistema eleitoral que premiasse os partidos que cooperam para a formação dos governos. Uma tal solução poderia passar, por exemplo, por um sistema misto (à alemã), mas com duas voltas na componente uninominal (na parte dos círculos uninominais, só é eleito quem tiver mais de 50% dos votos; caso contrário, haverá uma segunda volta à qual só concorrem os dois mais votados: tal estimularia a política de alianças, como acontece em França). O problema é que, muito provavelmente, a direita subscreveria mais facilmente esta solução (porque sabe cooperar) do que os socialistas (porque preferem o marasmo das alianças recorrentes com a direita a ter de cooperar com a esquerda radical). Mas este é hoje o nó górdio de qualquer reforma do sistema político: trazer para o sistema de tomada de decisão ao nível dos governos os cerca de 20% dos eleitores da esquerda radical que têm estado sempre excluídos dos mesmos. E, note-se, tal como demonstram sucessivos estudos ao longo do tempo, tal exclusão é sobretudo fruto das elites das esquerdas desavindas, já que os respetivos eleitores preferem claramente a unidade.

Politólogo, professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)
 
 
 
 
 

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