Pelo menos na forma, “discurso de Passos Coelho é o oposto do de Sócrates”

Aldina Marques analisou à lupa a construção das emoções na linguagem dos políticos.

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O antigo ministro da Economia Manuel Pinho viu-se obrigado a pedir demissão depois de fazer o gesto de chifres para a bancada comunista Nuno Ferreira Santos

O “discurso contido” de Pedro Passos Coelho é o extremo oposto do discurso de José Sócrates. O do antigo primeiro-ministro é emocional, porque “assenta na construção de emoções”. O discurso do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, é "despido de vivacidade", estando a sua expressividade "reduzida ao mínimo", "quase de monge" de quem dificilmente se adivinham estados de alma. Paulo Portas é "um bom orador". E António José Seguro "não entra em nenhum padrão especial". São imagens possíveis construídas através das linguagens e dos discursos políticos de quem governa ou está na oposição, pelo olhar da linguista e professora Aldina Marques, do Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos da Universidade do Minho.  

A investigadora, que analisa há 20 anos os discursos em São Bento, abstém-se de descrever o discurso do Presidenteda República, Cavaco Silva, mas não de comentar o caso que o envolveu quando, na semana passada, o cronista e escritor Miguel Sousa Tavares se lhe referiu como “palhaço”, para depois reconhecer que não o devia ter feito. Tratou-se de um “caso paradigmático” de uma nova tendência “para o uso de excessos na linguagem” e de uma maior agressividade – um padrão que está a tornar-se “habitual”, considera.

“É um exemplo perfeito dessa banalização de uma agressividade que invade o nosso dia-a-dia para além do Parlamento” de que fala Aldina Marques. E não começa necessariamente na Assembleia da República, mas é transversal a todas as bancadas, e a especialista considera-o “preocupante”.

Nos estudos que desenvolveu nos últimos tempos, aponta também os “estilos completamente diferentes” entre Passos Coelho e José Sócrates. E isso vê-se no ritmo da elocução, que em Passos Coelho é "mais pausado”, e em José Sócrates é "mais rápido”. Mas também nas estruturas discursivas. “O discurso de José Sócrates assenta muito na repetição e na retoma. É um dos mecanismos para criar um tom mais emocional”, diz a professora, deixando claro que “não consegue testar a sinceridade das emoções”. Enquanto isso, “Pedro Passos Coelho optou por um estilo mais pausado, mais contido, menos sensível a estas dimensões de construção das emoções.”

O primeiro-ministro é “mais contido em termos discursivos” e portador de um “discurso mais elaborado”. “São estilos completamente diferentes”, sintetiza. “Pedro Passos Coelho também cede a momentos de irritação, quando provocado, mas estes são pontuais.”

A investigadora posiciona-se na perspectiva das ciências da linguagem e não da ciência política, mas como autora duma tese de doutoramento sobre o funcionamento do discurso político parlamentar, o seu objecto de estudo tem sido os políticos, deputados e membros do Governo que estão ou passaram pelo hemiciclo.

Exemplos de excelência nos discursos
Nos últimos 20 anos, três figuras merecem menção da investigadora como exemplares pelos seus “discursos e uma argumentação bem construídos”: Almeida Santos, Laborinho Lúcio e Adriano Moreira. É a nota positiva que deixa no fim de uma conversa por telefone entre Lisboa e Braga – onde Aldina Marques lecciona na Universidade do Minho – sobre outras mais negativas, como uma crescente agressividade a marcar as intervenções parlamentares, a linguagem em manifestações e no espaço público, que podem reflectir o mal-estar – ou pelo menos a pressão – relacionado com a crise que atravessa o país. Mas também a crescente tendência para uma política-espectáculo e para a emergência de uma “nova classe política à margem dos políticos” que ganha poder pelo protagonismo que tem nos media por via dos comentários políticos semanais em horário nobre na televisão.

São disso exemplo Marques Mendes, Manuela Ferreira Leite ou José Sócrates, entre outros. Em comum, partilham uma “nova dimensão de fazer política que tem muito poder por usar a comunicação social”, ganhando assim “um acesso directo ao povo português”, diz Aldina Marques.

Também a noção da política-espectáculo tem ganho força. Para tal contribui a presença – mais notória em tempo de eleições – de políticos na televisão, como aconteceu “com todos os líderes parlamentares em programas de televisão de entretenimento” como O Gato Fedorento. “É uma estratégia eleitoral” que passa por “divertir” e “humanizar a imagem” dos políticos aos olhos do cidadão comum.

Da televisão ao Parlamento
O estilo agressivo sempre esteve presente no Parlamento, mas a agressividade agudizou-se, nos últimos anos, ao ponto de chegar por vezes ao insulto em que se põe em causa a coerência política e por vezes pessoal do adversário. Também aqui há um sinal dos tempos. “Estes picos de tensão tornaram-se mais frequentes nos últimos tempos. A situação de crise leva-nos talvez a alguns excessos de linguagem. Todos andamos mais pressionados. O Governo e o Parlamento também, face à situação de crise em que se encontra o país”, considera ainda Aldina Marques.

Basta ver os cartazes nas manifestações, para além dos oficiais das centrais sindicais, diz a professora. “Em muitos, predomina o insulto puro e duro”, aponta. E deixa uma mensagem: “Todos temos o direito de protestar, mas há um grau de civilidade que garante que somos todos portugueses. Não consigo ver aí nenhuma dimensão positiva.”

Mesmo os que não se distinguem pela agressividade, como António José Seguro, não ficam totalmente alheios a ela. O líder do PS “não entra em nenhum padrão especial”, considera. Mas o facto de ser o líder do principal partido da oposição favorece “esses picos de agressividade”, e da sua boca também escapa uma linguagem “por vezes crua”, característica presente em todas as bancadas da Assembleia, considera Aldina Marques.

“O excesso desse tipo de linguagem pode mascarar a discussão dos problemas e ao mesmo tempo transformar-se num modelo para uma sociedade que fica muito agressiva.” São recorrentes as acusações de que um deputado "acabou de dizer uma mentira", algo não permitido por exemplo no Parlamento inglês. Também em Portugal, Aldina Marques nota que a discussão assenta muito no aprofundar do desacordo e não na procura do consenso com o adversário.

"É um discurso de poder", diz Aldina Marques: "Cada bancada, cada membro do Governo, tem como objectivo mostrar o desacordo como forma de construir uma relação de poder relativamente ao adversário." Uma maior agressividade não favorece a democracia, conclui. “A democracia passa por ouvir os outros para podermos ouvir a nossa voz.” E a agressividade impede que essa escuta se faça, de forma límpida, nos dois sentidos.
 

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