Debate sobre as esquerdas

É imperioso o debate sobre o caminho a seguir quando a esquerda hoje partilha o poder em coligações com a direita, em países como a Holanda, a Irlanda e agora na Alemanha. E, muito provavelmente, em breve em Portugal. Cruzar os braços? Impossível.

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Angela Merkel com Sigmar Gabriel, os rostos da coligação na Alemanha John MacDougall/AFP

Comecemos pelas críticas mais comuns ao reformismo de esquerda. Enunciemos algumas delas: os erros na gestão do social, a aliança às corporações, o temor reverencial perante a alta finança, a desconfiança da extrema-esquerda e o fracasso da “terceira via”.

A esquerda tem pouca prática de gestão, prefere o conforto do Orçamento ao risco do mercado, diz a direita. Quando chamada a gerir empresas públicas, institutos, sociedades de economia mista e parcerias, sente-se embaraçada num terreno eriçado de dilemas. Não é verdade. São inúmeros os exemplos em que a esquerda geriu bem, mas infelizmente são numerosos os casos sem história ou mesmo de má memória. E por cada erro de socialistas pagamos todos em reputação. Todavia, perante os erros da direita, o mercado é estranhamente tolerante. À família tudo se perdoa.
A esquerda tem um registo histórico de contemporizar com as corporações, sejam de médicos, advogados, engenheiros, economistas, professores, farmacêuticos ou de funcionários públicos. Tende a deixá-las medrar, de início como aliadas, depois deixa-se capturar, hipnotizada como por serpente encantatória. Os últimos 30 anos documentam entre nós este ascenso silencioso e aparentemente irreversível. Estaremos mais libertos agora com a crise? Que não haja ilusões, as corporações estão por agora limitadas na sua margem de manobra, mas retomarão a tentativa de captura na exacta medida da saída da crise. A direita tende a recuperá-las para as manipular. À esquerda cabe colocá-las no seu lugar.

O temor reverencial da esquerda perante a alta finança é um problema de cultura. Pouco familiarizada com o meio, tende a ver respeitabilidade na finança. Acontece que aqueles que até 2008 gozavam da consideração geral vêem hoje a sua crónica escancarada. A cultura nacional confiava cegamente na banca. A crise financeira quebrou a relação de confiança. O que se tem passado fora de portas, já depois da primeira crise e primeira repressão, branda em demasia, com a manipulação do Euribor e Libor e ao que parece dos indicadores relativos a mercados de gás natural, veio dizer-nos que não estamos mais perante os patrões do guarda-livros Quintino de Uma Família Inglesa. Por vezes enfrentamos corjas de malfeitores, de fato e gravata. A esquerda tem estranha dificuldade em se separar de dois modelos, o dos que continuam acocorados, ou pelo menos paralisados, perante estes supostos valores e os que adoptam o insulto como arma. Poucos cuidam de, pacientemente, desmontar a cabala. Dá trabalho e leva tempo.

A desconfiança perante a extrema-esquerda é sempre mais baseada na práxis do que na teoria. É preciso ter passado por episódios onde se foi vítima do maniqueísmo e da perversão da suposta solidariedade para se sacudir o jugo pretensamente ideológico. Ainda maior num país que cultivou durante décadas a superioridade moral dos comunistas, reconhecidos como os mais consequentes resistentes, heróis e santos. A fronteira entre a recusa da coacção da extrema-esquerda e a assimilação ao reformismo centrista, se é difícil de definir, é desconfortável de sacudir. É necessário ter a superioridade de um Mário Soares para se praticar a crítica sem receio de pedradas na esquina. Sócrates que o diga, quando tinha permanentes e injustificados piquetes de protesto nos locais para onde se dirigia. Ter uma conduta independente, definir uma linha que não seja encostada à corrente da negação fácil não é tarefa simples. Seguro que o diga também.

Finalmente, os falhanços da terceira via. Tirando os oito anos da governação Clinton que o tornaram um dos mais respeitados presidentes dos EUA, na Europa o registo é pouco positivo. O fracasso mais visível foi o de Blair, político modelar antes do acesso ao poder, com uma prática quase irrepreensível nos primeiros cinco anos e, depois, o descalabro do Iraque, a mentira compulsiva, a colagem aos primos da América, a conversão tardia e a entrada no circuito das conferências pagas a cem mil dólares.

De nada lhe valeu ter tido Anthony Giddens a seu lado e uma plêiade de intelectuais e pensadores reformistas. Blair é hoje um peso para a esquerda, um descartável. Com o seu desalentador e sinuoso percurso acabou com a terceira via. Infelizmente, outros exemplos se podem apontar, como os anteriores governos socialistas nos Países Baixos, na Dinamarca ou na Suécia.

Eis por que é tão difícil e desagradável debater o que seja hoje a esquerda socialista ou social-democrata, depois de exemplos frustrados. Tanto mais que parte dela está liquefeita na Grécia, reduzida ao osso na Espanha, inepta na França, diluída em disputas pessoais na Itália. Mas é imperioso o debate sobre o caminho a seguir, quando ela hoje partilha o poder em coligações com a direita, como na Holanda, Bélgica, Irlanda, Dinamarca, Áustria, Finlândia e agora na Alemanha. E, muito provavelmente, em breve em Portugal. Cruzar os braços? Impossível, quando a direita sozinha no poder, como entre nós, afoga o povo em impostos, liquida a harmonia social, vende o património, destrói os instrumentos da solidariedade e ainda nos insulta do comboio para que pretende arrastar-nos, sem rumo certo.

Eis por que é tão importante regressar aos valores: à solidariedade, à cidadania, à cultura, à promoção do ambiente sustentável, à defesa do património e da história, à igualdade de género. Ou promover os paradigmas da inovação, da ciência e do conhecimento, da educação e saúde públicas, usando de mão firme sobre os poderes fácticos, sejam eles económicos, financeiros ou externos. Retomar as lutas de sempre contra a violência, a agressão territorial, o racismo, a xenofobia, o proselitismo dominador, a perversão nas relações de proximidade ou mesmo familiares, a tortura. Conhecer e prevenir os riscos, como a corrupção, o paternalismo, o amiguismo, a demagogia, o desperdício. Lutar por um modelo económico que demonstre que monopólio não rima com concorrência, direitos não rimam com privilégios, negocismo não rima com inovação.

E se queremos um rochedo para sobreviver em anos difíceis, um porto a defender, um bastião a reforçar, temos o Estado social. Não necessitamos de melhor bandeira.

 

Segundo texto

A crise bancária
Na Europa, a crise bancária não está resolvida. Um bilião de euros em activos financeiros tóxicos permanecem parqueados em bad banks (dos quais 600 alemães). Cumprir Basileia III até 2018 exigirá aos bancos um esforço de 3,2 biliões de euros para reconstituição dos fundos próprios. Alguns, de menor arcaboiço financeiro, podem soçobrar. Tarda a União. Acrescem tensões na Grécia, Portugal e Itália. Apesar da escassez de recursos, poderá ser necessário activar o Mecanismo Europeu de Estabilidade, ainda sujeito a decisão intergovernamental e impedido de financiar directamente a banca. O crédito não chega às famílias e empresas. Aumenta o peso da dívida pública no PIB.

Nos Estados Unidos a economia revela resiliência. Com a oferta de liquidez assegurada pela Reserva Federal, o PIB cresce a 3%, o país renova tecido industrial, cria emprego, diminui a dívida privada e pública. Nas economias emergentes antevê-se desaceleração. O crescimento do Brasil, da Rússia e da Índia não é tão sustentável quanto parecia. A China muda o padrão de crescimento. Se a Europa não deixar de correr atrás do prejuízo, mergulhada em austeridade, não poderá haver saída.

João Ferreira da Cruz, economista
 
 

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