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Colocar o engano no centro da política

Não quero saber se o político A ou B engana a mulher, ou tem uma filha que esconde do público, se fez ou não um aborto, se é homossexual e está dentro do “armário”, ou se fuma qualquer droga leve, e, consequentemente minta e oculte qualquer destes comportamentos privados em público. Detesto a exposição que a comunicação social anglo-saxónica faz da vida privada dos políticos e acho inaceitáveis as teses que para aí circulam de que existe um direito natural de violar a vida íntima de um político porque ele é político, e que se confunda deliberadamente o maior escrutínio sobre aspectos da sua vida pessoal quando esta toca o espaço público, o que é aceitável, com a devassa generalizada da sua vida privada e íntima. A esfera da intimidade é para mim inviolável por regra, mesmo que possa haver limitações em certos aspectos muito restritos da privacidade. Não aceito a tese, que também circula na esquerda, de que se um político andar a fazer campanha eleitoral com a mulher isso dá direito aos jornalistas de revelar que ele tem uma amante, ou se for mulher e falar contra o aborto, não pode ter feito um aborto, ou a tese muito comum na imprensa cor-de-rosa de que, ao usar para sua publicidade a exposição do jetset, isso obriga alguém a “assumir” (como eles dizem) “namoradas” umas a seguir às outras e a não ter vida privada.

A privacidade foi uma tão difícil conquista do modo “burguês” de viver, ou seja do progresso material de muitas pessoas nos últimos duzentos anos, da sua saída do mundo asfixiante das aldeias, onde todos sabem tudo de todos, que a última coisa que quereria repor esta era em nome de uma outra aldeia ainda mais pastosa, a “aldeia global”. Privacidade é liberdade, é uma forma peculiar de liberdade que permite a cada um ter uma identidade e uma efectiva capacidade de decisão “moral”. Exige, é certo, alguma cultura e alguma riqueza material, não está ao alcance dos mais pobres, mas a defesa da privacidade é um upgrade civilizacional, como a anestesia.

Isto serve de intróito para dizer que não considero que haja necessariamente uma impregnação dos “maus” comportamentos privados na vida pública, e detesto a máquina de tornar flat os políticos matando qualquer espessura psicológica que não suporte a pressão para a exposição total. Churchill não aguentaria um mês com os critérios de exposição moralista actuais, mas Hitler tinha uma vida privada sóbria e frugal. Já é outra coisa falsificar um currículo para anunciar títulos académicos que não se tem, usar de bens e recursos públicos para se “pagar” a vida que se tem, quando ela é mais complicada, assumir comportamentos pré-criminosos ou socialmente inaceitáveis como seja a violência doméstica. E, claro e como é óbvio, aceitar a corrupção.

Feita esta fronteira, há uma discussão sobre a moralidade em política de outra natureza e penso que ela é crucial nos dias de hoje. É quando a imoralidade, a mentira, o engano, o desprezo pelas pessoas comuns, o fácil pisar dos mais frágeis, torna a decência mínima que a política deve ter em democracia, um bem precioso e a indecência um veneno quotidiano.

Vivemos em tempos onde essas imoralidades abundam, todas elas tendo como efeito a destruição da dignidade do seu semelhante, o seu amarfanhamento pela indiferença ou o dolo, com o acesso ao poder de uma geração de políticos absolutamente amorais, criados numa escola em que a desertificação cultural e ideológica é total, em que o manobrismo reina no meio de pequenos círculos e em que a educação pela intriga, feita em meios muito medíocres, sem abertura a nenhum mundo, nem a organicidade dos meios pequenos, nem o cosmopolitismo. Eram os políticos de antes melhores? Uns eram, outros não, mas não havia esta fusão de mediocridade e amoralidade dos dias de hoje, como regra de vida e de carreira.

Este amoralismo não é um pragmatismo, que podia ser um mérito, nem sequer um oportunismo que a política em democracia aceita como necessário em certas circunstâncias. É outra coisa: é uma ignorância e uma indiferença, um egoísmo obsessivo mas de muito pequeno alcance. Está muito ligado à falta de mundo e de leituras, a um provincianismo atroz, e a uma vida enclausurada em experiências estandardizadas e triviais, que tiram dimensão ao exercício do poder. Quando estas pessoas chegam ao topo, isto revela-se de forma muito cruel. O problema é que há sempre quem pague um custo por este modus vivendi. O país e os outros.

Uma das formas mais evidentes deste amoralismo político é a introdução do logro, do engano, do dolo, no âmago da decisão política. Os cínicos dirão que este tipo de engano, esta coreografia, é comum no teatro da política e habitual na democracia. Mas mesmo que se aceite um quanto deste tipo de comportamentos, é muito diferente o seu uso e abuso, a sua despudorada exibição como instrumento de política. E isso é ofensivo para o comum dos mortais. 

A acusação ao Primeiro-Ministro de que a sua palavra não valia nada, provocou-lhe um surto de irritação mais do que de indignação. Na verdade, a começar pelo próprio, ele sabe muito bem que o valor da sua palavra é nulo, e isso não o preocupa muito, não porque seja “mau”, mas porque o “valor da palavra”  remete para um conjunto de valores que ele e a sua geração acham antiquados e arqueológicos.

Veja-se o caso do “temporário” / “definitivo” dos cortes, um exemplo típico de como a “palavra”, no sentido de uma afirmação de honra, não tem nenhum valor. Desde o primeiro corte do subsídio de Natal, ainda em 2011, que tal foi apresentado como excepcional. O mesmo aconteceu nos cortes sucessivos de salários e mais tarde de pensões. No ano seguinte, passaram a ser válidos apenas enquanto houvesse “programa”, adiantando-se o ano do fim para 2013. Em 2013, o fim da troika passou para meados de 2014, mas em 2014, estendeu-se até ao fim do ano. Com a mais recente afirmação do Primeiro-ministro, vemos que ele pensa que são para sempre.

Poderá dizer-se que então nesse caso ele estaria a falar verdade? Não, ele está mais próximo da verdade quando diz que “não são para voltar atrás”, mas isso não significa que a sua “palavra tenha valor” Quando fala em modo eleitoral, os cortes (desculpem, as “poupanças”) são “temporários”. Quando fala em modo constitucional, para o Tribunal Constitucional, são também “temporários” e “excepcionais”. Quando fala em modo troika diz-lhe que os cortes são “definitivos”.  Quando o Primeiro-ministro entra em modo de “mercados”, são também “”definitivos”. Que o governo, na sua concepção do “ajustamento” está do lado da troika e tudo fará para que sejam “definitivos”, não sobra dúvidas. Mas que valor tem a “palavra”, quando ela muda conforme os destinatários e conforme as circunstâncias?

Nada disto é muito sofisticado, nem elaborado, o dolo é mesmo muitas vezes muito grosseiro, e isso se deve a que o governo e o Primeiro-ministro acham que ter que dar explicações sobre esta matéria é um desperdício de tempo e tem um infinito desprezo por aqueles que lhe perguntam sobre as suas contradições. No seu entender, ele, o governo, fará o que tem que fazer, fará o que quer fazer, e como tem o poder, a faca e o queijo na mão, nem sequer se preocupam muito em disfarçar.

Ora isto, para milhões de pessoas, no receiving end,  não é uma abstracção nem um truque de retórica, isto é a sua vida. Tratá-los assim é obsceno e imoral. Ora desta imoralidade, que falta ao mínimo respeito pelas pessoas, todos temos que cuidar e muito a sério. E isso obriga a falar de novo de decência e moralidade, porque estamos em tempos de desprezo.

 

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