Cavaco, a pedagogia da simulação
Na sessão oficial sobre o 40.º aniversário do 25 de Abril, em que se impediu que os capitães de Abril falassem sob o pretexto de que, disse-o Cavaco, eles não seriam “proprietários do 25 de abril” e de que o dia não “deve servir de arma de arremesso na luta política”, o homem que contaminou metade da nossa experiência democrática (como PM, como PR, como ministro das Finanças: 19 anos!) quis cumprir “o dever cívico de realizar a pedagogia democrática da memória da ditadura perante as novas gerações” que “desconhecem o que é a experiência de viver sob um regime autoritário, a que o 25 de abril pôs fim graças à ação decidida de um punhado de militares corajosos.” Mas, pergunto, corajosos como Salgueiro Maia, a quem Cavaco recusou conceder, em 1992, uma pensão vitalícia por “serviços distintos prestados à Pátria”, ou corajosos como Óscar Cardoso e os outros pides a quem, pelo contrário, a concedeu?
Cavaco lembrou-nos que “no percurso pessoal de cada um, existirão certamente outros dias que são lembrados com especial emoção. Mas nenhum outro evoca a nossa memória coletiva como o dia 25 de abril de 1974.” A sua “especial emoção” terá sido a da democracia, da liberdade e da paz conquistadas, a do “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia? Teria esperado Cavaco pela mesma “madrugada” por que esperara Sophia e aqueles que lutaram contra a ditadura? É estranho porque, revistos anos de discursos e a sua Autobiografia política de 2002, Cavaco falou sempre do “pós-25 de Abril” como “desordem política, económica e social e ausência de autoridade do Estado”, de “domínio comunista” (discurso de 20.10.1989). “Ao ouvir na TV as declarações de alguns membros do Governo, do Conselho da Revolução (…), voltava-me para a minha mulher e dizia: 'Esta gente não está boa da cabeça, parece um país de loucos'” (Autobiografia política, vol. 1, pp. 38 e 41). É isto que sempre lhe ouvimos. Coerente com o homem de quem, antes do 25 de Abril, aos seus quase 35 anos, só se lhe conhece a declaração à PIDE, de 1967, de, como era de esperar e era legítimo, “não exercer qualquer atividade política”, mas que se considerava “integrado dentro do atual regime político”.
“Ao fazer uma retrospetiva destas quatro décadas”, Cavaco conclui “que só nos aproximámos dos ideais de abril quando soubemos unir-nos nas opções essenciais.” Por exemplo, “quando conseguimos aprovar uma Constituição que é a matriz fundadora do nosso regime democrático e do Estado social de direito.” A mesma Constituição votada pelo PPD mas da qual Cavaco dizia que sujeitava Portugal a uma “tutela coletivista imposta pelo golpe comunista e socialista do 11 de Março” (discurso de 19.5.1990), que pretenderia, dizia ele, a “perpetuação de uma orientação marxista e socializante para a sociedade portuguesa” e fora aprovada num “processo não respeitou a dignidade de Portugal nem os nossos mais legítimos interesses” (artigo de Cavaco no JN, 25.4.1994)? Aquela cujas regras, de que fala Cavaco, não são cumpridas pelo atual governo, chumbadas que são, uma após outra, várias das reformas troiko-austeritárias, pedaços inteiros de Orçamentos de Estado? É que Cavaco nem por isso cumpre a própria Constituição e demite tal governo; que me lembre, no verão passado deixou até que ele se recauchutasse depois de ter caído com o estrondo da demissão “irrevogável” de Portas...
Nem discuto aqui a legitimidade de, em democracia, ascender ao poder quem por ela nunca nada fez e que mostrou horror permanente, militante, pela revolução que lhe deu origem. Cavaco foi libérrimo de conquistar o poder sem gostar do 25 de Abril e da Constituição, sem necessitar de ter sido militante antifascista! O que é revoltante é esta contra-pedagogia da simulação. Ninguém o obriga, por mais PR que seja, a elogiar uma coisa e a outra, da mesma forma que nunca amou (como nunca usou, e bem!, o cravo vermelho). Só tem é de cumprir a Constituição, nem que seja a versão descafeinada dela que, em 1989, fez aprovar. O PR eleito por menos votos na história da democracia portuguesa, com a mais baixa popularidade de sempre, escusa é de, depois de anos a fazer a “pedagogia” de uma revolução “totalitária”, “comunista” e “soviética”, colar-se memória do 25 de Abril no ano em que os portugueses que não o sentimos como presidente da nossa República lhe gritamos a Grândola aos ouvidos.
Foi Freitas do Amaral quem disse estar “convencido, mas hoje julgo que estava errado, de que a grande maioria da direita portuguesa era, ou se tinha transformado, sinceramente, numa direita democrática. (…) A grande maioria da direita portuguesa só é democrata de fachada e no fundo, lá no íntimo, é salazarista” (entrevista a Notícias Magazine, 9.3.2003).