Aclare-se o regime
Portugal é o país das tretas. Eu não quero parecer demasiado negativo, porque Portugal também é um país agradável, de gente boa, comida apetitosa e um excelente sol. Mas a quantidade de tretas, de jogos de cintura, de pequenos teatrinhos, de uma no cravo e outra na ferradura, de dar com a mão esquerda para tirar com a direita, de costas que servem alternadamente para a pancadinha e para a facadinha, de encenações parolas com o único objectivo de não ter de enfrentar os “cornos do destino”, como escreveu Natália Correia, é absolutamente impressionante. Mais: são artimanhas e simulações transversais a toda a sociedade, que culminam nas decisões do Tribunal Constitucional.
Paremos um pouco neste dia 5 de Junho de 2014 e olhemos à nossa volta. Temos um governo que fingiu que a troika se tinha ido embora a 17 de Maio, só para poder festejar o acontecimento antes das eleições europeias, quando ainda nem sequer conseguiu fechar a 12.ª avaliação, e não se sabe quando o fará. Tretas e mentiras. Temos um líder da oposição que inventou umas eleições primárias à pressa, com um formato do qual discordava abertamente há três anos, só para conseguir arrastar-se mais uns meses à frente do PS. Mentiras e tretas. E temos um acórdão do Tribunal Constitucional que, pela segunda vez em três anos, decreta uma inconstitucionalidade em suspensão: o Orçamento de 2014 é inconstitucional, mas só de Julho a Dezembro. O Palácio Ratton entrou em saldos – vende inconstitucionalidades com 50% de desconto. Seria interessante averiguar se meia-inconstitucionalidade não é, ela própria, inconstitucional, mas se calhar é melhor esquecer isso, que já temos problemas que cheguem.
Mas, esperem, que as tretas não acabaram. O Governo, depois de fingir que achava mesmo que pudesse ser considerado constitucional um Orçamento em que os cortes na função pública começavam nuns obscenos 675 euros brutos, agora inventou uma “aclaração” sobre o acórdão do TC, que – tentem acompanhar-me – não é bem uma aclaração, pois vai com uma sugestão de nulidade lá pelo meio, sendo que ao mesmo tempo o Governo não tem competência para requerer aclarações ao TC, porque só os autores do pedido de fiscalização o podem fazer. Em resumo: tretas, tretas e mais tretas.
E tudo isto porquê? Porque Pedro Passos Coelho, muito em particular, que tanto gosta de falar em mudar de vida, foi mais um daqueles que fizeram uma limpeza no disco rígido mal chegou ao Governo. Nos seus tempos de oposição, considerava a revisão constitucional uma prioridade, mas assim que chegou a São Bento iniciou o seu Governo de costureirinha da Sé, sempre de agulha e dedal nas mãos, corta aqui, cose ali, vê a bainha, faz uns remendos, tudo muito improvisado, tudo muito mal cosido, tudo com a cabeça muito baixa e o olhar fixo a um palmo do nariz, enquanto o país emagrecia dentro do mesmo fato, cada vez mais coçado e esgarçado.
Na verdade, não é só o acórdão do TC que tem de ser aclarado. É este regime de infinitas tretas em que demasiada gente – ministros, juízes, secretários-gerais – não têm coragem de fazer aquilo que se impõe. Uns agarram-se a princípios abstractos de igualdade, proporcionalidade, protecção de confiança ou razoabilidade, ignorando olimpicamente o estado do país. Outros só fazem orçamentos de desenrasca, sem um vislumbre de reformas sistemáticas ou de medidas estruturais. Seria caso para dizer “estão bem uns para os outros”, não fosse no meio de uns e de outros estarmos nós.