A tentativa de Passos de traçar o perfil de um Presidente é uma “aberração democrática”
Faltam dois anos de mandato a Cavaco, que não terá gostado de ser tratado pelo primeiro-ministro no “pretérito”, mesmo que “perfeito”. Mas este é, afinal, um novo PSD, autor de “pirueta em cima de pirueta”.
O PÚBLICO ouviu um politólogo e um constitucionalista sobre o papel do Presidente da República, a tradição de líderes partidários opinarem sobre o caderno de encargos do chefe de Estado, que é eleito directamente para um cargo unipessoal e de representação de todos os portugueses. A táctica do presidente do PSD sobre o cenário do que lhe convém na Presidência e a aparente exclusão do hipotético candidato Marcelo é, no mínimo, “uma aberração democrática”, que revela “ignorância, falta de educação cívica e deselegância institucional”, diz o constitucionalista Bacelar de Vasconcelos. Para o professor da Universidade do Minho, a conclusão que se pode retirar da página 22 da moção de estratégia global na qual Passos disserta sobre o acto eleitoral que decorrerá em Janeiro de 2016 é que é “desastrada, a ‘talhe de foice’, uma manobra de diversão” para desviar a atenção das europeias, a escassos quatro meses de distância.
Passos Coelho formula o que deve ser um Presidente. Ou melhor, no que deve evitar tornar-se um chefe de Estado: protagonista catalisador de contrapoderes, catavento de opiniões erráticas, popularidade fácil, complicar ou bloquear, protagonista político. “São três frases muito curtas, muito bem feitas, com uma linguagem técnico-política que não faz parte do léxico habitual de Passos Coelho”, avalia Maltez, professor catedrático do ISCSP. “É uma boa jogada, mas demasiado tacticista. O PSD ao antecipar as presidenciais, faz-nos esquecer as europeias, daqui a uns dias, e as legislativas”, acrescenta.
Vamos a factos. O primeiro-ministro já disse que quer voltar a sê-lo e olha para o futuro cada vez mais convicto de que pode ganhar as legislativas de 2015. Mas Cavaco Silva está a pouco mais de meio do mandato. Passos Coelho, justamente enquanto primeiro-ministro, é “parceiro de um quadro institucional”. É nomeado e pode ser demitido, através da dissolução da Assembleia da República, pelo Presidente. Cavaco pode tirar Passos do Governo até seis meses antes de terminar o mandato.
“O Presidente está a meio do seu mandato. Uma candidatura presidencial é uma decisão na solidão da consciência. Depois de ser eleito é o Presidente de todos os portugueses, há uma distanciação do papel partidário”, lembra Bacelar de Vasconcelos. Esta precipitação de Pedro Passos Coelho torna-se por isso ainda mais espantosa, porque ele é parceiro deste quadro constitucional. “O primeiro-ministro tem uma relação de confiança com o Presidente, além de que é ele que o nomeia e que pode dissolver a Assembleia”, explica o professor de Direito Constitucional. Perante tudo isto, “a reacção de Marcelo é inteligente e ponderada, como tudo que faz, embora não aprecie o estilo. Ele é vítima de uma atitude sectária, divisiva e, ao demarcar-se, fica no lugar da unidade.” E deixa o ónus da jogada política para Passos: “É uma pirueta em cima de outra pirueta”, conclui.
O primeiro-ministro tem, além disso, uma pedra no sapato: “Quem é que no velho PSD é passista? Nem Ângelo Correia”, afirma Maltez. Pedro Passos Coelho “tem um problema gravíssimo, não há um PPD histórico que já não lhe tenha mordido. Este é um novo partido, Marcelo é o velho partido, tal como Marques Mendes ou Manuela Ferreira Leite”, concluiu.
Mas com uma diferença, sublinhada pelo politólogo, que é o facto de Marcelo ser o mais bem colocado da área nas sondagens e “aparentemente Portugal não estar no topo das prioridades de Durão Barroso”.
E Cavaco, como define o seu papel? Disse-o em Junho de 2013: “Sempre discordei daqueles que entendem que a magistratura presidencial deve ser uma magistratura negativa e conflitual, daqueles que têm uma visão do Presidente da República como um actor político que participa e se envolve no jogo entre maiorias e oposições, na busca, muitas vezes, do engrandecimento do seu protagonismo pessoal”.
Em Janeiro de 2009, José Sócrates apresentava uma moção de recandidatura à liderança dos socialistas. Também queria voltar a ser primeiro-ministro. E foi. No documento Defender Portugal, Construir o Futuro, Sócrates define linhas programáticas e metas eleitorais – maioria absoluta (que não obteve), casamento entre pessoas do mesmo sexo, reforço dos direitos dos imigrantes ou referendar a regionalização. Nada sobre presidenciais. Apesar dos dois anos que, tal como agora, separavam o país de eleições para o cargo, havia uma diferença. Cavaco Silva estava a cumprir o seu primeiro mandato e era expectável, como dita a tradição, que cumprisse o segundo.
E é justamente a pouca tradição que deixa muita margem para manobras de criatividade, como explica o politólogo José Adelino Maltez. “Tivemos três presidentes eleitos por sufrágio directo e civis – Soares, Sampaio e Cavaco –, temos pouca tradição. Sob aparente elogio de Cavaco, Passos dá elegantes farpas e facadas quando ainda lhe faltam dois anos de mandato e quando o pós-troika pode não ser uma viagem pelo mundo dos sonhos. Se fosse Cavaco Silva não gostaria de ser pretérito, mesmo que pretérito perfeito. Cavaco anda irritado, ao que parece, com o estilo deste PSD”, analisa o catedrático do ISCSP. Mas a história do PSD também se conta com a “tradição da indisciplina”. “Cavaco Silva aparece como candidato sem dizer nada ao líder do PSD na altura, Fernando Nogueira”, recorda Maltez.