À procura do segredo da governabilidade

A menos de quatro meses das legislativas o PÚBLICO foi ver quais os cenários pós-eleitorais que mais favoráveis são à governabilidade. E quais os riscos de ingovernabilidade do país no caso de das urnas resultar uma maioria relativa.

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António Costa e Passos Coelho Rui Gaudêncio

A expectativa em torno de qual será a solução para a governabilidade do país, caso não saia das urnas uma maioria absoluta, é aumentada pelo facto de o Presidente da República estar em fim de mandato e, a partir de 9 de Setembro, seis meses antes do seu termo, perder o poder constitucional de dissolução da Assembleia da República e de convocação de eleições intercalares. Ao que se soma a impossibilidade de a nova Assembleia, eleita no início de Outubro, poder ser dissolvida nos primeiros seis meses da sua vigência, o que atira qualquer possibilidade de resolver um impasse governativo através de novas eleições para o início do Verão de 2016.

 PR não pode impedir
O que é facto é que, apesar destas limitações, não há nada na Constituição que permita ao Presidente impor condições para a formação de um governo, mas também não há nada na Constituição que lhe imponha prazos. Daí que haja margem para Cavaco Silva poder defender que é do "interesse nacional" procurar consensos.

Mas, se os partidos não quiserem chegar a entendimento, "o Presidente não pode fazer grande coisa", defende o constitucionalista e catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Coimbra Joaquim Gomes Canotilho, em declarações ao PÚBLICO. Cavaco Silva "pode tentar influenciar a consensualização, pode pedir aos partidos que se entendam, mas não pode impedir posse de governo minoritário, só se dissolver a Assembleia", garante o constitucionalista para quem "os governos minoritários têm a sua história".

Gomes Canotilho sublinha que "o Presidente pode tentar, em correspondência com o resultado eleitoral", encontrar uma solução estável, "mas não tem grande margem de manobra". E conclui: "Considero que o sistema político português é parlamentar. Assim, a minha compreensão da Constituição é restritiva dos poderes do Presidente. Ele tem de ver os resultados e agir de acordo com eles. Um governo de minoria tem uma fraqueza congénita, mas não se pode impedir se esse governo tiver apoio da Assembleia."

A impossibilidade de um governo minoritário ser travado pelo Presidente da República é também defendida, em declarações ao PÚBLICO, por João Bonifácio Serra, historiador e antigo chefe da Casa Civil do Presidente da República Jorge Sampaio. João Serra lembra mesmo que o próprio Cavaco Silva "já foi empossado num governo ultraminoritário", nas legislativas intercalares de 1985, em que o PSD obteve apenas 29,87% dos votos, tendo o seu Governo minoritário sido derrubado em 1987, pela aprovação parlamentar da moção de censura apresentada então pelo PRD. Isso provocou, aliás, novas eleições intercalares, das quais saiu o primeiro Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva.

Igualmente o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais garante que, "na prática, o Presidente da República não pode deixar de dar posse a um governo minoritário". Especialista em presidencialismo e antigo assessor do Presidente Jorge Sampaio, Reis Novais defende que o Presidente "pode desenvolver esforços para conseguir um consenso alargado, mas não deixar de dar posse a um governo".

 Cavaco "limitadíssimo"
Jorge Reis Novais defende que "o sistema tem sempre resposta, se o Parlamento não formar uma maioria há sempre recurso a eleições", mas frisa que "isso será já com o próximo Presidente" e que "este Presidente estará já limitadíssimo" pelo que "não deve ser parte do problema". O constitucionalista é mesmo categórico ao afirmar que tal atitude de recusa por parte do Presidente "é inviável", visto que "lançava o país numa crise".

O catedrático da Universidade de Lisboa conclui categórico: "Se não empossar o primeiro-ministro que sair das urnas, o Presidente tem de manter o actual Governo em gestão. Pode fazê-lo, mas não é razoável do ponto de vista político. Por maioria, se a vitória for do PS, o Governo actual perde legitimidade política, para além da falta de legitimidade eleitoral. E isso obrigaria a que o Parlamento fosse dissolvido pelo próximo Presidente."

Outros especialistas em direito constitucional que pediram o anonimato afirmaram mesmo ao PÚBLICO que a manutenção do actual Governo em funções será impossível, se a coligação entre o PSD e o CDS perder as eleições. Por um lado, esse impedimento seria imposto pelo contexto internacional de Portugal. O Estado português está ainda a ser monitorizado pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional e, se surgisse uma situação em que fosse impossível a formação de um governo após eleições, isso poderia causar problemas. Há mesmo quem tenha afirmado ao PÚBLICO que "os juros da dívida disparariam".

Por outro lado, há quem frise que não faz sentido argumentar que o Presidente pode encontrar soluções alternativas à sua obrigatoriedade de dar posse a quem vencer as eleições, mesmo em situação minoritária, uma vez que é sabido que Cavaco Silva não é adepto de soluções tecnocratas e de governos de iniciativa presidencial.

Minoritário? Como?
Mas se o Presidente da República não tiver espaço para não empossar o primeiro-ministro, o que é facto é ele tem abertura constitucional para fazer uma leitura autónoma das urnas. Isto, porque a Constituição na alínea 1 do artigo 187.º apenas afirma que "o primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais".

Esta formulação prende o Presidente ao que as urnas determinarem, mas dá-lhe alguma margem para interpretar os resultados. E há quem em conversa com o PÚBLICO tenha advertido para que a leitura que venha a ser feita possa variar consoante o escrutínio final.

Há mesmo quem admita que, se a coligação entre o PSD e o CDS ganhar as eleições com maioria relativa, o Presidente possa optar por empossar um governo do PS. O exemplo avançado passa por um resultado que leve à constituição de um grupo parlamentar do PSD com menos deputados do que o PS. Nesse caso, pode haver possibilidade de o Presidente dar posse a um primeiro-ministro indicado pelo PS que venha a ser apoiado parlamentarmente por outros partidos e garanta a governabilidade.

Esta hipótese foi justificada ao PÚBLICO com o facto de que o que conta em termos de formação de governo são os deputados eleitos e não os votos. E foi mesmo avançado como exemplo o caso das eleições inglesas de 1974 que foram ganhas com maioria relativa dos votos pelo líder conservador, Edward Heath, mas, como o líder trabalhista, Harold Wilson, tinha mais deputados na Câmara dos Comuns, a rainha Isabel II nomeou-o como primeiro-ministro.

João Serra argumenta que as maiorias relativas são diferentes consoante quem ganhar. Porém, se a vitória for da coligação e esta "tiver maioria relativa, é sempre mais frágil que se for o PS, por uma razão subjectiva que é a de que a coligação parte de uma maioria absoluta". Isso "significaria que houve quebra de votação e enfraquecimento subjectivo". Além disso, acrescenta o historiador, "uma maioria relativa da coligação dificilmente contará com benevolência e mais facilmente enfrentará uma coligação negativa, embora talvez não logo na apresentação do programa do governo".

Igualmente Jorge Reis Novais considera que, "se um governo minoritário tiver contra si a oposição, não governa", mas "a prática demonstra que a direita só consegue governar com maioria absoluta", enquanto "a esquerda governa, mas de forma instável".

Contudo, há quem considere que o PS só terá possibilidade de formar um governo estável, ou com maioria absoluta, ou com uma maioria relativa reforçada, ou mesmo tangencial à maioria absoluta. Uma situação em que bastariam alguns deputados de uma pequena bancada para garantir um acordo de governação.

Nesse sentido, Jorge Reis Novais argumenta que "a situação não é hoje a mesma de 2011" e que "a esquerda sabe que, se um governo de esquerda minoritário for derrubado na Assembleia, pode promover a eleição de um governo à direita", ou seja, "a memória de 2011 é a da coligação negativa da oposição que derrubou o PEC IV" e o Governo de José Sócrates, o que "levará a que a esquerda pense duas vezes".

O constitucionalista advoga que "o PS minoritário pode não fazer coligação e governar com acordos pontuais à direita e à esquerda", sendo necessário prever nesta análise "as novidades que possam aparecer no Parlamento, os novos partidos". Em causa está a possibilidade de eleição de deputados do Livre/Tempo de Avançar ou do PDR.

No entanto, há, no seio da direcção do PS, quem refira que o historial dos socialistas na Câmara de Lisboa não é exemplo para o governo nacional. E que a facilidade em fazer acordos à esquerda em termos municipais não é transponível para o plano nacional.

Sem estigmatização
Há, porém, quem desdramatize a possibilidade de o próximo governo ser minoritário. O constitucionalista Gomes Canotilho defende mesmo que "os governos de maioria relativa são pensados na Constituição". E explica que "o governo e o seu programa não são votados" pela Assembleia da República e que apenas há votação em relação à apresentação do programa se algum dos partidos da oposição optar por apresentar uma moção de censura. "Isto é assim, para prever a existência de governos de maioria relativa", conclui Gomes Canotilho.

A importância de não estigmatizar as maiorias relativas é acentuada também por João Serra, sobretudo, se ela for do PS, já que entende que "há mais condições para, durante um ano ou dois, o PS governar com maioria relativa". E o historiador, que foi também representante do Presidente Jorge Sampaio para as relações institucionais com a Assembleia da República, vaticina: "É sabido que a esquerda tem dificuldade em formar coligação, mas tem experiência de fazer acordos na Assembleia."

João Serra defende ainda que, se uma maioria relativa do PS for derrubada, o PS pode sempre vitimizar--se em campanha, "lamentar-se que não o deixam governar". E aponta o exemplo da "primeira vitória de Carlos César nos Açores", em que o PS "ficou a um deputado da maioria absoluta", num Parlamento regional em que "o PSD e CDS tinham maioria". Logo "no primeiro Orçamento regional, o PSD e CDS disseram que votavam contra, desde que o Presidente da República se comprometesse a não convocar eleições. À época, Mota Amaral argumentava que podia formar governo do PSD e do CDS". Só que, prossegue o antigo chefe da Casa Civil, Jorge Sampaio "fez saber que convocaria eleições e que não dava governo a quem não tivesse ganho nas urnas".

Insistindo na necessidade de não estigmatizar as maiorias relativas, João Serra sublinha que "sempre que houve maiorias absolutas foi em circunstâncias de dramatização da vida política em que o Presidente foi actor dessa dramatização". Em 1987, Mário Soares dissolveu a maioria relativa de Cavaco Silva, o que resultou na sua primeira maioria absoluta. Em 2005, Jorge Sampaio dissolveu a Assembleia e precipitou a queda de Santana Lopes, dando a maioria a José Sócrates. Ora, acrescenta o historiador, "o actual Presidente não está a fazer um discurso de dramatização".

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