“A Igreja Católica aprendeu as regras do jogo democrático”

Paul Christopher Manuel, da Universidade de Mount St. Mary, em Maryland, nos Estados Unidos, diz que a Igreja Católica se porta como uma importante organização da sociedade civil.

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Santuário de Fátima Nelson Garrido

No início de Setembro, a marcar o novo ano pastoral, o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apelou aos diocesanos que votem nas legislativas e nas presidenciais. Não fez referência a qualquer partido. Apontou a última encíclica do papa Francisco: a “ecologia integral”, que tanto reafirma que a vida começa logo na concepção, como condena o consumismo, o predomínio da finança, faz a apologia do direito ao trabalho, da solidariedade, do respeito pelo ambiente.

E aquela mensagem é de direita ou de esquerda? Para Paul Christopher Manuel, não tem sentido reduzir o catolicismo ao binómio direita/esquerda, como muitos têm feito, de forma renovada, desde que Francisco foi eleito. “Podemos dizer que se inclina à esquerda numas questões (apoio aos pobres) e à direita noutras (aborto, casamento). Num sentido mais amplo, abre as questões da ontologia e da existência.”

O autor de Religion and Politics in Contemporary Portugal: Of Devotion and Democracy, capítulo do livro Religion and Politics in a Global Society: Comparative Perspectives from the Portuguese-Speaking World, que acaba de ser lançado nos EUA,  conhece bem Portugal. Natural de Massachusetts, descende de portugueses que se mudaram de Santarém para Rhode Island em 1919. Estava a fazer doutoramento, na Universidade de Georgetown, quando decidiu dedicar a sua carreira ao estudo do país dos avós. Já antes se debruçara sobre as aparições de Fátima, que recusa reduzir a uma ferramenta de resistência dos conservadores na I República, uma das rampas de lançamento do Estado Novo. Sabe que não se esgotou com a ditadura o papel de Fátima na vida política portuguesa. Logo após o 25 de Abril de 1974, houve quem tentasse convencer o povo a trocar a religiosidade pela consciência revolucionária. A hierarquia católica reagiu contra a esquerda, em particular contra o Partido Comunista, sobretudo no Norte e nas Ilhas. E muitos devotos apegaram-se a Nossa Senhora de Fátima, alguns convencidos de que tinham rezado pouco pela conversão da União Soviética.

Foi há 40 anos. O país fervia. A prelatura opôs-se à integração de padres nas listas dos candidatos à assembleia constituinte. Pediu aos católicos que votassem “com toda a liberdade”, mas não se absteve de afirmar que lhes estava vetado votar em partidos que, de algum modo, se afigurassem “incompatíveis com a concepção cristã do homem e da sua vida em sociedade”. E muitos sacerdotes, de forma mais ou menos velada, deram indicações de voto.

A separação entre Estado e Igreja ficou consagrada na Constituição de 1976. Entretanto, a Igreja Católica aprendeu a jogar as regras do jogo democrático, sublinha Paul Christopher Manuel. Tenta influenciar decisões políticas sem confundir papéis. Assume-se como uma importante organização da sociedade civil, independente, com uma visão própria, com interesses próprios.

Os católicos sempre se organizaram para garantir auxílio aos pobres, aos doentes, aos desvalidos. E diversas vezes fizeram-no para tentar bloquear a despenalização da interrupção voluntária da gravidez ou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E a adopção e a co-adopção por homossexuais. É evidente que diminuiu a influência política do catolicismo desde a transição democrática, nota o investigador. “Durante a sua visita oficial, em 2010, o Papa Bento XVI agradeceu aos leigos católicos os seus esforços contra o aborto e em favor da família fundada no 'casamento indissolúvel entre um homem e uma mulher', descrevendo o casamento homossexual como 'insidiosos e perigosos'. Quatro dias depois, o Presidente da República ratificou a lei do casamento homossexual do Partido Socialista.” Não era a primeira derrota. “Governos socialistas já tinham aprovado outras medidas legislativas culturalmente progressistas, como a descriminalização do consumo de droga em 2001”, lembra o mesmo cientista político. E a interrupção voluntária da gravidez fora despenalizada, via referendo, em 2007. Em todas essas derrotas, avalia, a hierarquia católica reagiu com alguma elegância. A Conferência Episcopal Portuguesa não pediu aos crentes para não votarem nos partidos responsáveis pela mudança, como fez a espanhola, recorda Helena Vilaça, professora da Universidade do Porto, especialista em Sociologia da Religião. Não excomungou fiéis por apoiarem a despenalização do aborto, nem deputados por aprovarem o casamento gay.

A sociedade mudou nestes 40 anos. Longe vai o fervor religioso da era António de Oliveira Salazar/Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira. Diminuiu o número de pessoas que se declaram católicas. Faltam sacerdotes. É preciso ir buscá-los ao estrangeiro. As pessoas vão cada vez menos à missa. Multiplicam-se as uniões de facto, os divórcios, as crianças nascidas fora do casamento. Apesar disso tudo, como diz Paul Christopher Manuel, a Igreja Católica continua a ser a maior organização religiosa do país (79,5% dos portugueses declararam-se católicos em 2011 e 45,7% iam à missa). Surpreende-o a afluência à missa no Natal, na Páscoa, nas festas dos santos populares, a quantidade de baptismos, casamentos e funerais católicos. Nota que, apesar de as tensões políticas terem acalmado, Fátima não se converteu num fóssil do antigo regime, mantém-se “parte da identidade nacional”, alimenta uma certa sensação “de importância, de singularidade”. “Não é o monopólio religioso que costumava ser, mas a impressão de que a Igreja Católica está em rápido declínio pode ser exagerada”, diz. Na sua opinião, os cientistas sociais têm de mudar a lente que costumam usar para observar o catolicismo contemporâneo. É preciso ter em conta a forma como o desafio demográfico (marcado pelo envelhecimento da população) se relaciona com as mais populares fontes de força espiritual (como Fátima) e com o papel social da Igreja.

Usando essa outra lente, o catolicismo até lhe parece vibrante em Portugal. Há séculos que a Igreja recolhe donativos e aplica pelo menos parte deles nas chamadas obras de misericórdia. Um dos aspectos mais visíveis desse trabalho, hoje, é a rede de santas casas. E o domínio no universo de instituições particulares de solidariedade social a prestar serviço a crianças desprotegidas, famílias carenciadas, idosos, deficientes. “A crise trouxe renovada atenção à necessidade social de associações cívicas católicas”, diz. Neste momento, o país vive dois processos contraditórios: por um lado, “a secularização tende a afastar as pessoas da dependência espiritual diária da religião organizada”; por outro, “a política de austeridade exige mais serviço aos pobres, prestado por organizações do terceiro sector”. “A 'questão católica' no Portugal contemporâneo obriga a perguntar se o catolicismo continuará a ser uma força na vida associativa do século XXI ou se enfrentará um futuro de lento e constante declínio”, interpreta. Para já, “o que diminuiu foi a capacidade de influenciar a moral”. “A igreja Católica compete com muitas vozes seculares em assuntos como sexualidade, casamento, divórcio, interrupção voluntária da gravidez”, sublinha, num dos seus artigos sobre aborto. E “os católicos convictos, a maior parte dos quais a viver nas zonas rurais do Norte e Centro do país e nas ilhas, sente maior atracção por Nossa Senhora de Fátima ou pelo santo popular local do que pela teologia oficial vinda de Roma ou das arquidioceses de Braga ou Lisboa”.

Há valores que se tornaram comuns e esses, no seu entender, têm muito mais influência no voto: o amor, a solidariedade, a compaixão, a ajuda o próximo. Está convencido, por exemplo, de que foi por compaixão, solidariedade, vontade de apoiar as mulheres numa situação de crise, poupando-as a penas de prisão e a complicações relacionadas com o aborto clandestino, que muitos católicos votaram "sim" no referendo da despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

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