A Década
O documento instalou-se no meio do debate político, recolheu surpreendentes apoios, elevou o nível do debate e fez estremecer o Governo.
A Década varreu, de uma assentada, vários mitos: o de que o PS não tinha programa e teria dificuldades em o preparar; o de não haver alternativa à austeridade, tal como a troika e os seus seguidores aditivados haviam interiorizado; o de que o debate eleitoral seria à volta de “mais do mesmo”, assemelhando-se as políticas e programas de esquerda e direita como gémeos univitelinos; o de que as medidas de política apenas se analisam pelo seu custo orçamental, em soma algébrica de cortes e aumentos; e que tendo o PSD deitado a toalha ao chão na reforma de Segurança Social, nenhum partido se atreveria a nela tocar. Desde terça-feira passada tudo mudou.
O documento desenha um cenário macroeconómico por alternativa ao da Comissão Europeia, propondo sobre ele um programa realista e inovador. Documento de gente sabedora mas com humildade para acolher críticas, aperfeiçoamentos e correcções no mês e meio que medeia daqui até ao programa eleitoral.
Existe alternativa à ideologia e teimosia da austeridade cuja execução acrítica nos levou ao fundo do buraco: mais trinta pontos percentuais de dívida pública, desemprego elevado que erraticamente avança e recua, exportações que patinam na dependência da escala do exportador e do comportamento inseguro dos mercados de destino; investimento anémico; défice que não nos larga e provavelmente este ano registará dois choques adicionais: novas dívidas na saúde e os prejuízos da resolução do BES; crescimento económico ainda tímido e apenas devido à recusa do Tribunal Constitucional em caucionar todos os cortes.
O debate já não vai ser à volta de “mais do mesmo” como a direita e a esquerda à esquerda do PS tanto gostariam: ninguém ficou indiferente às propostas — os empresários a quem a descida do IRC não agrada; os sindicatos, avessos a qualquer mudança, que receiam a redução das pensões no futuro, em troca do alívio temporário das taxas contributivas patronal e laboral para a Segurança Social; a direita, roída de inveja pela inovação que supunha estar esgotada à esquerda, acusa o modelo de relançamento do consumo, poupança, investimento e emprego como eleitoralismo que tanto gostaria de aplicar; jornalistas económicos dissecam números com lupa e bisturi, dividindo-se entre o cepticismo prudente e uma ainda hesitante adesão, perdida que foi a oportunidade de desancar uma proposta cuja qualidade os surpreendeu. O documento instalou-se no meio do debate político, recolheu surpreendentes apoios, elevou o nível do debate e fez estremecer o Governo.
Todas as medidas se relacionam e interactuam. O clássico normativismo da esquerda foi substituído pela concepção de incentivos a comportamentos desejáveis, sobretudo na criação de emprego e solidificação do precário. Não mais é possível uma contabilidade de deve e haver, ela complica-se com o multiplicar e dividir, efeito de incentivos e penalidades numa economia regulada de forma mais inteligente que o trivial. Poderá não se realizar? Certamente. Mas a esquerda demonstra que se pode modernizar, enquanto a direita ficou no dogma, lançando medida atrás de medida sem estimar os seus efeitos perversos. É tempo de inovar na política económica.
Restam as propostas sobre a Segurança Social. Tão interessantes e complexas que a elas teremos de voltar em próxima ocasião. E o Governo, como reagiu? A quente, sem ler o documento, postulando aquilo que ele não continha. Em stress, enviou o vice-primeiro-ministro ao Parlamento, convencido que dois ou três sound bites resolviam o problema. Preparou um argumentário negativo. Enterrou-se. Filho da austeridade receia a orfandade, reagindo com comentários entre a desacreditação e a ironia. Pede o consenso do PS para um corte de 600 milhões em pensões, por não saber como os encontrar, perdido no labirinto austeritário. Não se viu ainda uma refutação substantiva e quando se atiram números eles são como chapadas de cimento a uma parede não descascada. Não pegam. Nem sequer dão sinal de terem lido bem o texto e de tentarem compreender as contas. E depois, exibir o fantasma de 2011 começa a cansar.
Professor catedrático reformado
Artigo Lua
Os maniqueus
O Eurogrupo, intransigente, tarda em acomodar os gregos. Na réplica, estes entendem que as metas para a consolidação orçamental impostas pelos credores impõem reformas com desvalorização interna asfixiante. Há consenso parcial no diagnóstico, não nas soluções. O impasse voltou a Riga. Mercado de trabalho, sistema fiscal, regime de pensões, privatizações, crédito malparado, fuga ao fisco e corrupção não têm resposta que permita libertar 7,2 mil milhões de euros e concluir o programa de ajustamento. Arranjos são possíveis, desde que não alterem o que está em vigor, diz Juncker. De contrário: submetam-se ou abandonem. A confrontação absurda com credores oficiais conduzirá a Grécia a outro default, pois teimar na austeridade para a redenção económica, é lógica de pensamento único. Que tudo agrava e nada resolve. Varoufakis caiu na armadilha. Tal como o Governo PSD-CDS que se auto-asfixia no colete-de-forças que adoptou. Antecipando uma resposta europeia, os economistas dizem-nos que, sem romper compromissos, é possível ultrapassar bloqueios estruturais, pôr cobro à emergência social, dar confiança aos credores e respirar. O relatório dos economistas para o PS recusa a lógica maniqueísta do “ou crês, ou morres”. Afirma ser possível sair da austeridade e do empobrecimento, sem abandonar a zona euro. Nos limites do Tratado Orçamental, o relatório não rompe e reforça a autonomia da política económica e fiscal do país. Nos próximos quatro anos, o saldo orçamental poderá atingir 1%, a dívida pública baixar para 117,6% com crescimento médio anual de 2,6% do PIB, o desemprego cair para 7,4% com reforço do investimento em 6,3%, em média anual. Irrealista? As previsões são auditáveis e as medidas propostas escrutináveis. Os dados de partida conhecidos e comparáveis. Há, portanto, outro caminho que não o dos maniqueus. João Ferreira da Cruz, economista